Lenio Streck defende decisão de Gilmar Mendes: “Mais importante do que se pensa”

Atualizado em 4 de dezembro de 2025 às 20:41
Lenio Streck e Gilmar Mendes
Lenio Streck e Gilmar Mendes (Foto: Jacson Miguel Stülp/Câmara de Vereadores de Santa Cruz do Sul/)

Por Miguel do Rosário, em O Cafezinho

“Essa decisão do Gilmar é muito mais importante que se pensa”, afirmou o jurista Lenio Streck em entrevista ao UOL News nesta quarta-feira, 4 de dezembro de 2025. Para Streck, a grande virtude da medida é que ela “traz de volta a juridicidade para pedidos de impeachment, ao menos com o Supremo Tribunal”.

O jurista foi enfático ao avaliar os mais de 100 pedidos de impeachment protocolados contra ministros do STF nos últimos anos: “Algum dos 42 pedidos contra o Xandão ou algum dos 100 pedidos em geral contra todos os ministros tem algum grau de juridicidade ou era tudo questão política?”, questionou, para concluir de forma categórica: “Tudo era político”.

Streck defende que a banalização do impeachment transformou o instituto em uma ferramenta de pressão política, incompatível com a estabilidade exigida por um regime democrático. A incoerência do sistema anterior, segundo ele, era gritante: para processar um ministro por um crime comum, a Constituição exige a atuação do Procurador-Geral da República; no entanto, para destituí-lo do cargo, um ato de gravidade muito superior, qualquer cidadão poderia apresentar uma denúncia.

“Como assim? Isso não é nem um pouco razoável”, criticou o jurista. Ele ainda comparou a situação brasileira com a de outros países: “Na Alemanha não existe nenhum pedido de impeachment. Brasileiro contando isso na Alemanha seria considerado bizarro”.

O jurista também contextualizou a Lei nº 1.079, de 1950, que regia o processo, como uma norma anacrônica, “feita do tempo em que se atava cachorro com linguiça”, quando o Ministério Público era um mero apêndice do Poder Executivo e o conceito de Estado Democrático de Direito ainda não havia sido plenamente desenvolvido no Brasil. A lei, em sua visão, está “muito velha, carcomida”.

Streck chegou a afirmar que o STF poderia ter ido mais longe e declarado toda a lei inconstitucional, como fez com a antiga Lei de Imprensa. A solução adotada por Gilmar Mendes, utilizando a técnica da “interpretação conforme a Constituição”, foi uma forma contemporânea de adaptação da velha legislação à nova ordem constitucional inaugurada em 1988.

Trata-se do que os constitucionalistas chamam de “filtragem constitucional”: reinterpretar leis antigas à luz dos valores da Constituição atual, como se fosse atualizar um software antigo para funcionar em um sistema operacional moderno.

Outro ponto central levantado por Streck é a omissão do Congresso Nacional em atualizar a legislação sobre o tema. O Parlamento, que poderia ter modernizado as regras do impeachment há décadas, “fica na dele porque não quer se incomodar”, afirmou.

Essa inércia legislativa, seja em temas complexos como drogas e aborto, seja na regulação dos próprios mecanismos de controle entre os poderes, cria um vácuo que, por vezes, precisa ser preenchido pelo Judiciário para garantir a aplicação da Constituição.

Para Streck, a decisão coloca “a coisa de volta nos trilhos”, impedindo que a política “fagocite o direito”. O jurista também prevê que a decisão será confirmada por uma “maioria folgada” no plenário do STF, pois o que “fala mais alto é a institucionalidade”. Para ele, “a decisão veio em boa hora”.

A decisão do ministro Gilmar Mendes, decano do Supremo Tribunal Federal, determina que apenas a Procuradoria-Geral da República (PGR) tem legitimidade para iniciar processo de impeachment contra ministros do STF e que a sua abertura depende de um quórum qualificado de dois terços do Senado. A medida foi tomada no âmbito das ADPFs 1.259 e 1.260, apresentadas pelo partido Solidariedade e pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).

O ministro Flávio Dino, em participação no Fórum JOTA realizado nesta quarta-feira, destacou a gravidade da situação: “Nós temos hoje 81 pedidos de impeachment contra ministros do Supremo. Isso jamais aconteceu antes no Brasil e isso nunca aconteceu em nenhum país do planeta Terra”.

Fernando Neisser, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), defende a solidez jurídica da decisão. Ele explica que o STF, sob a Constituição de 1988, deixou de ser uma mera instância recursal para se tornar o árbitro dos conflitos entre os poderes.

Nesse novo desenho institucional, a exigência de um parecer técnico da PGR antes da abertura de um processo de impeachment funciona como um obstáculo necessário contra ações de cunho puramente político ou golpista. Neisser argumenta que essa filtragem constitucional é essencial para proteger a independência do Judiciário em um contexto de polarização política.

O comentarista Reinaldo Azevedo também classifica a decisão como “impecável juridicamente”. Ele argumenta que a urgência da medida é justificada pela “campanha estruturada contra o STF” que, segundo ele, está em curso.

Para Azevedo, o quórum de maioria simples para a abertura do processo conferia um “poder imperial” ao presidente do Senado, permitindo que um pequeno grupo de parlamentares (apenas 21) pudesse gerar constrangimento e pressão indevida sobre um ministro da Suprema Corte.

A mudança para um quórum de dois terços (54 senadores) alinha o processo de afastamento ao mesmo patamar de exigência para a aprovação de um novo ministro, trazendo coerência ao sistema.

A própria decisão de Gilmar Mendes é fundamentada em uma análise histórica profunda sobre a evolução do Poder Judiciário no Brasil. O ministro contrasta o papel secundário do STF sob a Constituição de 1946 com sua posição central na arquitetura de 1988.

A Lei de 1950 foi concebida para uma realidade em que os ministros eram vistos como “altos funcionários públicos”, e não como guardiões da Constituição com garantias específicas de vitaliciedade e inamovibilidade.

Com a redemocratização, o STF ganhou um papel central: tornou-se o guardião da Constituição e árbitro dos conflitos entre os poderes, com garantias constitucionais específicas para proteger os ministros de pressões políticas.

O ministro argumenta que um quórum baixo para a abertura do processo de impeachment fragiliza essas garantias, criando uma relação de dependência do Judiciário em relação ao Legislativo. Nas palavras de Gilmar Mendes, “o Poder Judiciário, nesse contexto, em especial o Supremo Tribunal Federal, manteria não uma relação de independência e harmonia, mas, sim, de dependência do Legislativo”.

Gilmar também recorre ao que os constitucionalistas chamam de “silêncio eloquente”: a Constituição de 1988 prevê expressamente que o Presidente da República, se denunciado, deve ser afastado automaticamente do cargo, mas não diz nada parecido sobre ministros do STF.

Esse silêncio não é acidental — é proposital. O constituinte sabia que o Presidente tem um vice que pode assumir, mas um ministro do STF não tem substituto. Afastar um ministro significa desfalcar o Tribunal.

Como observou a Procuradoria-Geral da República em seu parecer, acolhido por Gilmar: “Não se despreze, ainda, a circunstância de que o afastamento de Ministro do STF do seu cargo desfalca necessariamente o Tribunal, que não tem, ao contrário do Presidente da República, um substituto que assuma as suas funções”.

Um dos pilares da decisão é a vedação ao chamado “crime de hermenêutica”. Gilmar Mendes é enfático ao afirmar que não se pode responsabilizar um magistrado pelo mérito de suas decisões judiciais.

“Hermenêutica” é a ciência da interpretação jurídica. O ministro argumenta que criminalizar a forma como um magistrado interpreta a Constituição seria criar um “crime de hermenêutica” — ou seja, transformar a divergência de opinião jurídica em crime.

Na decisão, Gilmar escreve: “Não se mostra possível instaurar processo de impeachment contra membros do Poder Judiciário com base – direta ou indireta – no estrito mérito de suas decisões, na medida em que a divergência interpretativa se revela expressão legítima da autonomia judicial e da própria dinâmica constitucional”.

Permitir isso seria abrir um perigoso precedente para a criminalização da interpretação jurídica, intimidando juízes e minando a confiança pública nas instituições.

O ministro recorre à jurisprudência consolidada do próprio STF, que já decidiu que uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) não pode investigar atos jurisdicionais. Aqui, Gilmar aplica um princípio clássico da lógica jurídica, usado desde o Direito Romano: “a minori ad maius” (do menor ao maior).

O raciocínio é simples: se o Congresso não pode fazer o menos, também não pode fazer o mais. Se o Congresso não pode nem investigar uma decisão judicial (o menos), muito menos poderia punir e destituir um juiz por causa dela (o mais).

A decisão também se ampara no direito internacional, citando o caso Gutiérrez Navas y otros vs. Honduras, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2023.

Naquele caso, a Corte condenou Honduras por ter destituído quatro magistrados da Corte Suprema do país através do Congresso Nacional, sem notificação prévia, sem direito de defesa e sem qualquer motivação jurídica sólida.

A Corte Internacional foi clara: a independência do Judiciário é um pilar fundamental do devido processo legal e da democracia. Juízes só podem perder seus cargos por meio de procedimentos legais conduzidos por autoridades competentes, nunca como retaliação pelo conteúdo de suas decisões.

Dois juízes da Corte, Ferrer Mac-Gregor e Mudrovitsch, escreveram em voto conjunto: “A possibilidade de afastar um juiz pela mera contraditoriedade de suas decisões em relação aos demais Poderes é, possivelmente, a mais grave afetação ao princípio da independência judicial”.

Gilmar Mendes também alertou para o uso do impeachment como instrumento de intimidação: “O impeachment infundado de Ministros da Suprema Corte, portanto, se insere nesse contexto de enfraquecimento do Estado de Direito. Ao atacar a figura de um juiz da mais alta Corte do país, ao ponto de se buscar sua destituição, não se está apenas questionando a imparcialidade ou a conduta do magistrado, mas também minando a confiança pública nas próprias instituições que garantem a separação de poderes e a limitação do poder”.

Críticos podem argumentar que a decisão é um ato de autoproteção corporativa. No entanto, uma análise mais detida, alinhada às visões de juristas como Lenio Streck e Fernando Neisser, revela uma preocupação mais profunda com a estabilidade institucional.

A medida cautelar de Gilmar Mendes não blinda os ministros do STF, mas qualifica o processo de responsabilização, segundo ele próprio argumenta, exigindo um filtro técnico (PGR) e um apoio político robusto (2/3 do Senado).

Ao fazê-lo, a decisão restaura um equilíbrio necessário entre os poderes e garante que o guardião da Constituição não se torne refém de pressões políticas conjunturais.

Na minha análise, a decisão desmonta a estratégia abertamente golpista do bolsonarismo, que pretendia eleger senadores com o objetivo de derrubar ministros do STF e, assim, liberar o caminho para uma ruptura da ordem democrática no Brasil.

Essa estratégia incluía aprovar anistia para os golpistas do 8 de janeiro, soltar os bandidos envolvidos nos ataques às instituições da república e intimidar os ministros para que deixassem de proteger a soberania popular.

A medida de Gilmar Mendes, portanto, representa um passo fundamental para a consolidação do Estado Democrático de Direito no Brasil e para a proteção das instituições contra tentativas de subversão da ordem constitucional.

Francine Eustaquio
Francine Eustáquio, 21. Trabalha no DCM desde 2025. Interessada em política, cultura e temas sociais, dedica-se à produção de conteúdo informativo e otimizado para o público digital. Aprecia leitura, cinema e música, além de explorar novos destinos e experiências gastronômicas nas horas vagas.