
Por Leonardo Sakamoto, no UOL
Antes de ser operado hoje, Jair Bolsonaro escreveu uma carta de próprio punho reafirmando Flávio como o seu herdeiro político e candidato em 2026. O gesto lembra aqueles momentos de Game of Thrones em que a palavra do antigo monarca, mesmo enfraquecido e apagado, tenta mudar o tabuleiro, mas desperta rancores. Ao ungir Flávio como sucessor, Bolsonaro bota mais fogo na disputa pela herança simbólica do bolsonarismo. E, como em Westeros, essas disputas nunca passam sem guerra.
Enquanto os príncipes se alinham, a rainha consorte também se mexe. Michelle Bolsonaro, que nunca quis papel decorativo e também almeja o poder, vem tendo um protagonismo público que, para os enteados, soa como insubordinação ao pai — e, claro, a eles. Em qualquer corte medieval, isso seria lido como um desafio direto: não basta agir em nome do rei ausente, é preciso disputar quem interpreta sua vontade.
“Trata-se de uma decisão consciente, legítima e amparada”, escreveu Jair, na carta lida por Flávio. Ou seja: não estou sendo pressionado, tenho total direito de fazer isso, conto com respaldo político para tanto e, como sempre fiz, primeiro eu e meus filhos, depois o resto.
Nem bem Jair se ambientou à carceragem da PF e a crise sucessória já havia se instalado no clã. Flávio, Eduardo e Carlos Bolsonaro haviam criticado Michelle por atacar a construção da aliança com Ciro Gomes. Ele pode concorrer ao governo do estado com o apoio da direita para impedir a reeleição do petista Elmano de Freitas e dificultar votos em Lula. Depois de visitar Bolsonaro, Flávio pediu desculpas publicamente a madrasta, colocou panos quentes no caso, mas anunciou que seu pai endossara a sua pré-candidatura.
A diretora do PL Mulher vem aparecendo bem colocada em pesquisas de opinião como possível candidata à Presidência da República ou mesmo à vice em uma chapa capitaneada pelo governador Tarcísio de Freitas engoliu mal a decisão do marido de ungir desde já o primogênito.
Depois, Bolsonaro havia prometido uma entrevista ao portal Metrópoles, na qual reafirmaria, em alto e bom som, Flávio como seu candidato. Isso não interessava nem Michelle, nem os advogados de Jair — que ainda tentam cavar uma prisão domiciliar por caráter humanitário e se arrepiam diante da possibilidade de o ex-presidente por tudo a perder ao falar uma groselha. A entrevista rodou.
Daí, ela foi autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes como acompanhante do marido durante sua internação para a cirurgia de correção de hérnia inguinal bilateral. Já os filhos tiveram sua entrada recorrente vetada, precisando ser autorizada caso a caso pelo STF. O acesso integral da ex-primeira-dama ao ouvido de Jair, por um prazo que pode passar de uma semana, poderia alterar a decisão dele de apontar o filho senador como seu candidato à Presidência da República.
Após isso, eis que Flávio surge com uma carta escrita por Jair (ou copiada por ele) antes de entrar na mesa de operação. Não tem a força de uma entrevista em vídeo, mas foi o que deu para fazer.

A entrada de Flávio como pré-candidato se inseriu em uma estratégia para forçar o centrão (que tem o governador paulista como seu preferido) a aprovar uma anistia ou, ao menos, uma redução significativa da pena do ex-presidente. O PL da Dosimetria, que trata do segundo ponto, foi aprovado, deve ser vetado por Lula e questionado no STF. Mas não só isso: Bolsonaro teme que, uma vez eleita, qualquer outra pessoa que não seja um de seus filhos lhe dê às costas e ele apodreça na cadeia. Pior: tire dele a posição de principal líder de direita. Afinal, rei morto, rei posto.
Flávio passou a aparecer nas pesquisas como o nome da direita com mais intenções de votos no primeiro turno e alcançando os mesmos números de governadores da direita no segundo. Isso animou a sua militância (e a do lulismo, que vê nele um candidato mais fácil de ser batido) e desanimou o centrão e a Faria Lima.
Como já disse aqui, com Jair atrás das grades, o bolsonarismo pode virar franquia sem franqueador, com cada um abrindo sua loja, colando o seu adesivo na porta e fingindo que segue o manual. Michelle, que vocaliza o ultraconservadorismo religioso, tenta puxar para si o centro gravitacional do grupo; os filhos, também.
No fim, quem herdar o espólio não vai disputar apenas a próxima eleição, mas também o direito de definir o que “bolsonarismo” quer dizer daqui para frente. E, como sempre, não necessariamente vencerá o mais forte, mas o mais apto a sobreviver.
Se Game of Thrones tivesse sido filmado em Brasília, o episódio da vez começaria com o patriarca preso, escrevendo uma carta para definir a sucessão, com os filhos falando em seu ouvido enquanto escreve. Jair Bolsonaro, agora mais próximo das enfermarias do que dos palanques, decidiu agir como um rei deposto que ainda acredita mandar nos Sete Reinos. A “cartinha” foi lida em público, como a proclamação de um édito moderno. Serviu menos para pacificar o reino do que para atiçar as chamas da guerra civil no clã.
Há uma ironia trágica nisso tudo. Um líder que tentou permanecer no poder à força agora tenta organizar a sucessão com uma carta, como se a caneta fosse mais forte que a espada. Mas, em Westeros, e no bolsonarismo, cartas não selam a paz, anunciam batalhas. A cartinha não encerra a trama. Ela reinaugura a temporada.