
Por Leonardo Sakamoto, no UOL
O governo federal anunciou a intenção de avançar com a implementação da Tarifa Zero no transporte público como uma política nacional. O presidente Lula solicitou em reunião ministerial estudos e informações para identificar desafios e possibilidades. Desde então, diferentes pastas têm trabalhado para mapear caminhos possíveis, o que inclui identificar fontes de financiamento e estabelecer critérios sólidos para repasses.
A iniciativa tem apelo eleitoral. Políticas públicas de Tarifa Zero contam com amplo apoio popular. Na mais recente pesquisa Genial/Quaest, com margem de erro de dois pontos, 81% das pessoas entrevistadas se manifestaram favoráveis à liberação de ônibus e trens de graça nas grandes cidades. No ano passado, levantamento específico conduzido pela Confederação Nacional de Transportes (CNT, 2024) já havia identificado 86,7% de aprovação para a Tarifa Zero, sendo 58% dos participantes na pesquisa a favor da adoção de maneira universal.
O índice de reeleição dos prefeitos e prefeitas que implementaram a medida de maneira universal nas últimas eleições municipais foi de 88,8%, superior à média nacional, que, no primeiro turno, foi de 81,4%. Na cidade de Nova York, uma das propostas principais do candidato eleito, o democrata Zohran Mamdani, foi justamente a de ônibus rápidos e gratuitos, ideia resumida no potente slogan “Fast and Free”.
Resumir a movimentação a uma jogada política, porém, seria simplificar uma decisão que tem fundamentos bastante concretos e práticos. O transporte público está colapsando no Brasil. As principais capitais perderam de 2013 a 2023 cerca de 30% dos passageiros, um encolhimento que se reflete também em municípios médios e pequenos, com a falência do modelo de estruturação atual e da falta de priorização para o transporte público.
Em vez de mais avenidas, expansão de vias, túneis, pontes e viadutos que não resolvem o problema do trânsito, é preciso investir e garantir condições sólidas para o funcionamento de redes que sejam, não apenas gratuitas, mas também com qualidade. Assim como no slogan do novo prefeito de Nova York, não se trata apenas de liberar as catracas, mas garantir velocidade e condições adequadas para a mobilidade urbana nas cidades brasileiras.
Mais que uma jogada eleitoral rasa, o governo federal tem nas mãos uma oportunidade de promover uma política pública concreta, que pode beneficiar e transformar a vida de milhões de pessoas, com consideráveis ganhos econômicos, sociais e ambientais. Mas como financiar uma iniciativa tão transformadora?
Tarifa Zero sem criar novos impostos
Algumas das alternativas possíveis para iniciar um Programa Nacional de Tarifa Zero foram apresentadas no começo do mês no Congresso Nacional, no relatório técnico “Caminhos para a Tarifa Zero: estimativas de custos, formas de financiamento e implementação no Brasil”, elaborado por André de Brito Veloso (ALMG) Daniel Santini (USP), Letícia Birchal Domingues (UnB), Roberto Andrés (UFMG) e Thiago Trindade (UnB) como parte de um projeto de pesquisa conduzido pelo Instituto de Ciência Política (IPOL) da UnB.
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O estudo foi entregue em mãos ao presidente Lula durante a Caravana Federativa de Minas Gerais, realizada em Belo Horizonte em 11 e 12 de dezembro. Ele chegou a posar para fotos com o mesmo ao lado dos deputados federais Leonardo Monteiro, Reginaldo Lopes e Miguel Angelo, todos do PT de Minas Gerais.
O texto aponta, inclusive, possibilidades de custear a Tarifa Zero sem comprometer o disputado orçamento federal. A política é viável e pode ser construída, sem criar impostos novos e sem disputar recursos do orçamento. O governo tem uma oportunidade de ouro de implementar uma política popular a partir de uma reforma do Vale-Transporte, a criação do Novo Vale-Transporte.
O relatório demonstra que é possível implementar a política de maneira universal apenas reformulando a contribuição das empresas com o Vale-Transporte. A contribuição passaria a ser fixa cobrada por empregado custeada pelo empregador, com o desconto de 9 funcionários por estabelecimento, o que garantiria um caráter progressivo para a medida, beneficiando pequenas e médias empresas – a estimativa é de que 83% dos estabelecimentos estão isentos.
Conforme as projeções apresentadas, com um valor de R$ 255,00 por empregado, daria para arrecadar R$ 80 bilhões em cidades com mais de 50 mil habitantes. Mesmo desonerando as pequenas empresas, tal medida ampliaria a base arrecadatória, já que a cobrança não ficaria restrita a quem usa transporte coletivo, além de desonerar os trabalhadores em até 6% do salário, hoje comprometidos com o custeio do Vale-Transporte e simplificar a operação das grandes empresas. Todos os trabalhadores do país seriam beneficiados, deixando de ter parte de seus salários descontados.
O montante é suficiente para cobrir os custos projetados de uma política nacional. Valendo-se de uma metodologia de cálculo bastante abrangente e sofisticada, o estudo aponta que o custo total para implementar a Tarifa Zero de forma universal nas cidades com mais de 50 mil habitantes, o que beneficiaria quase 125 milhões de pessoas, seria de cerca de R$ 78 bilhões por ano. A estimativa foi elaborada a partir do cruzamento de dados de custos por quilômetro rodado e frota empenhada em diferentes dimensões populacionais de cidades, extrapolando os dados para todas as cidades com mais de 50 mil habitantes.
Tal levantamento indicou um custo total de R$ 65 bilhões, sobre o qual foi acrescentado 20%, considerando que deve haver um aumento na oferta do sistema com a adoção da política (que inevitavelmente provoca aumento de demanda) e também um ganho de eficiência a partir da mudança na estrutura de financiamento do sistema.
Não só quanto, mas como remunerar
Conforme o estudo, tão importante quanto a busca por formas de financiamento é pensar em como garantir critérios objetivos e razoáveis para os repasses, bem como transparência e garantias institucionais para o monitoramento da destinação dos subsídios. O estudo parte da premissa de que, para implementar a Tarifa Zero, é necessário criar regras sólidas que mudam completamente a lógica vigente – fator central para a profundidade do buraco no qual o transporte público brasileiro se afundou.

Em boa parte das cidades, incluindo em São Paulo, o financiamento ainda é baseado na quantidade de passageiros transportados, uma distorção que encarece o sistema e que se acentua quando a Tarifa Zero é implementada, mesmo que de maneira parcial apenas em domingos ou feriados.
Pagar pela quantidade de pessoas que usam o sistema encarece o custo e favorece a superlotação.
Em vez de ampliar o atendimento, garantindo condições adequadas para a população se mover, a regra favorece a redução da oferta ao mínimo, com mais gente sendo transportada na quantidade mínima possível de veículos coletivos. Em São Paulo, o aumento da demanda motivado pela Tarifa Zero aos domingos e feriados tornou o sistema mais caro, mesmo sem aumento da oferta, como sabem os que vivem na periferia e se acostumaram a esperar ônibus sempre cheios e insuficientes, ainda que gratuitos.
De novo, não basta assegurar transporte gratuito, é necessário garantir qualidade para os deslocamentos da população.
E, para isso, é preciso fundamentar novos contratos e revisar os em andamento para garantir que a remuneração, turbinada com recursos federais, seja baseada em custos reais. Regras, condicionantes e uma estruturação adequada para isto estão previstas na Proposta de Emenda Constitucional 25/2023, que prevê a criação de um Sistema Único de Mobilidade, que, tal qual o Sistema Único de Saúde, seja gratuito e universal. A proposta tramita no Congresso Nacional e é apontada no relatório técnico como fundamental para a instituição de um novo Programa Nacional de Tarifa Zero.
Produzido com o objetivo de subsidiar programas e ações da Presidência da República do Brasil, o estudo é o primeiro do projeto de pesquisa “Tarifa Zero e suas possibilidades de expansão no Brasil”, desenvolvido no âmbito do Instituto de Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), que conta com apoio da Frente Parlamentar em defesa da Tarifa Zero do Congresso Nacional. A pesquisa é conduzida pelo Núcleo Brasília do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia, Observatório das Metrópoles e pelo Grupo de Pesquisa Geopolítica e Urbanização Periférica e conta também com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo. Este primeiro relatório.