Jornalista da Globo critica Paes por “palco gospel”, enquanto emissora faz novelas “crentes”

Atualizado em 28 de dezembro de 2025 às 22:25
A jornalista Flávia Oliveira

Com a notória perda de público ao longo dos anos, a Rede Globo tem deixado cada vez mais claras suas intenções de conquistar o público evangélico — num movimento que soa como disputa direta com a Record (que, por razões óbvias, sempre explorou narrativas bíblicas) misturado a um certo desespero por relevância.
Esse público cresce exponencialmente mais do que qualquer outro grupo religioso no Brasil: já se aproxima de 30% da população. Onde tem gente, tem audiência. Onde tem audiência, tem lucro.

E a plim-plim tem feito de tudo: protagonista evangélica em horário nobre, crente no Fantástico, série documental voltada para fiéis — a este ritmo, em breve haverá mais evangélicos no Projac do que no Congresso, o que diz muito sobre a atual dinâmica do poder religioso no país.

Como cereja do bolo, uma jornalista da emissora passou a criticar Eduardo Paes por conta do palco gospel no réveillon do Rio de Janeiro.

No X, o prefeito do RJ escreveu:

“É impressionante o nível de preconceito dessa gente. O réveillon da Praia de Copacabana é de todos! A música gospel também pode ter seu lugar. Assim como o samba, o rock, o piseiro, o frevo, a música baiana, a MPB, a bossa nova… Cada um que fique no ritmo que mais curte! O povo cristão também tem direito a celebrar! Amém! Axé! Shalom! Namastê!”

Ao criticar o prefeito, a jornalista global Flávia repostou a publicação e retrucou:

“Nível de preconceito ‘dessa gente’. Essa gente que teve a própria festa apropriada por comércio. Essa gente que teve seus saberes em saúde reconhecidos e, posteriormente, destituídos pela mesma Prefeitura. Essa gente que é alvo preferencial de ataques e destruição.”

Tentou hablar, mas deu ruim.

A resposta afiada de Flávia se deve, como é possível perceber nessas poucas linhas, ao fato de ela interpretar o “dessa gente” de como provocação e descaso, referindo-se, nas entrelinhas, ao apagamento histórico e simbólico das religiões de matriz africana.

Flávia claramente perdeu o timing e a noção: não faria mal à jornalista prestar um pouco mais de atenção à linha editorial do canal para o qual trabalha: enquanto a Globo tenta trazer os crentes de volta para frente da TV, ela reclama de um palco gospel tentando lacrar no X.

O que Flávia não parece perceber é que a disputa pelo público evangélico entre Globo e Record é apenas um capítulo de um “topa tudo por audiência”. A Globo precisa tanto desse público que já escancarou suas intenções — oficialmente em nome da diversidade, mas, na prática, em nome do lucro.

O peso eleitoral dos evangélicos também explica por que as novelas passaram a apresentar personagens crentes mais complexos, humanos e menos caricatos, como quem diz: “nós também sabemos retratar fé, valores e família tradicional”. Isso reduz a rejeição à emissora e ameniza conflitos simbólicos com a ala conservadora da audiência.

A Globo não está “virando crente”; está tentando não perder relevância em um país cada vez mais atravessado pelo fundamentalismo religioso — fenômeno com o qual, evidentemente, a emissora não tem compromisso ideológico algum. O problema, portanto, não é criticar o palco gospel de Eduardo Paes; o problema é fazê-lo a partir de uma emissora que há tempos corteja o mesmo público com afinco quase missionário.

Falta menos palco aos evangélicos e mais coerência a quem denuncia privilégios seletivamente — sobretudo quando o evangelismo mais agressivo hoje não está na praia de Copacabana, mas no horário nobre.

Não é preciso ser especialista em teledramaturgia para perceber isso. Uma jornalista da casa — que queira ou não fala a partir desse lugar — deveria saber. Ainda assim, enquanto critica o prefeito por “privilegiar evangélicos”, silencia sobre os apelos explícitos da emissora para a qual trabalha.

Nathalí Macedo
Nathalí Macedo, escritora baiana com 15 anos de experiência e 3 livros publicados: As mulheres que possuo (2014), Ser adulta e outras banalidades (2017) e A tragédia política como entretenimento (2023). Doutora em crítica cultural. Escreve, pinta e borda.