“Quando teu coração suplicar/Ou quando teu capricho exigir/Largo mulher e filhos e de joelhos vou te seguir.” Por mais estranho que pareça, essa estrofe da canção “Tua Cantiga”, de Chico Buarque, divulgada em 28 de julho passado, despertou contra o genial compositor brasileiro a ira de setores do movimento feminista e de vítimas do abandono paterno.
Acusam-no de machismo e de atentar contra a integridade das famílias. Sob os escombros de um golpe de estado que arruinou o Brasil, até mesmo obras ficcionais não estão a salvo da intolerância. A escuridão desses tempos engolfa até gente esclarecida, letrada e de trajetória democrática. De repente, a visão turvada pela tragédia pátria impede que as pessoas enxerguem a criação de personagens como um elemento essencial das obras artísticas.
No cinema, nas novelas de TV, na literatura e nas músicas, os autores dão vida a personagens, que expressam situações e sentimentos próprios da natureza humana. Isso nada tem a ver com autobiografia, com endosso ou rejeição às ações e convicções dos personagens. Claro que a obra monumental de Chico, que o situa na galeria dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos, não torna seu trabalho impermeável a críticas e objeções.
Ele que sempre ergueu sua voz em defesa da democracia e das boas causas do povo brasileiro na certa prefere o barulho em torno de suas composições ao silêncio imposto pela censura, da qual foi um dos principais alvos durante a ditadura. O meu ponto nessa discussão, que fique claro, está a anos luz de questionamentos indevidos ao direito de as pessoas gostarem ou não da letra da nova canção de Chico.
Causa-me espanto é o súbito desconhecimento por parte de alguns críticos de que o artista não fala através de seus personagens. Essa constatação, por si só, de tão básica e primária, põe em xeque o conteúdo da torrente de críticas sofrida por “Tua Cantiga”, que é parte do novo álbum do compositor que está para ser lançado.
Como na triste realidade do Brasil de hoje estão vindo à tona posições, sentimentos e teses que o pensamento democrático julgava enterrados, esses protestos não chegam a surpreender. Provavelmente por falta de paciência para retroagir nesse debate conceitual, Chico resolveu reagir à polêmica, questionando os que acusam seu personagem de machismo. “Será que é machismo um homem largar a família para ficar com a amante ? Pelo contrário. Machismo é ficar com a família e a amante”, rebateu o compositor em seu facebook.
Os que veem uma súbita conversão de Chico ao machismo, aos 74 anos, deviam ao menos levar em conta o fato de que nenhum outro artista brasileiro do sexo masculino se identificou tanto com as mulheres e com a alma feminina como ele, conforme atesta um sem número de belas e antológicas canções de sua autoria.
Deixando essa amnésia dos críticos de lado, vale a pena citar o elogio técnico à canção feito por outro grande compositor. Diz Caetano Veloso sobre “Tua Cantiga” : “o ritmo de lento afoxé sob essas formas verbais aprofunda a sensação de brasilidade que só se supunha morta porque fazia tempos que Chico não vinha com uma música.”
Wadih Damous – deputado federal e ex-presidente da OAB-RJ