Morte de Marielle está sendo usada para governo espalhar o terror e justificar medidas que ela combatia

Atualizado em 18 de março de 2018 às 9:12
Marielle

Tudo o que o jornalista Ricardo Noblat escreve deve ser lido com reserva — foi ele quem cravou a renúncia de Michel Temer, na época em que foi revelada a delação da JBS.

Mas ele é amigo de quem está no governo — foi ele quem perguntou a Temer como conheceu Marcela, num programa do Roda Viva.

Feitas as ressalvas, vamos ao que ele escreve hoje, em sua coluna na Veja. É de de extrema gravidade: o governo espera outros atentados, como o que matou Marielle. Segue o escreveu:

Dizer, por enquanto, nenhuma autoridade diz para não produzir uma eventual onda de pânico.

Mas várias delas, sob a condição de não terem seus nomes revelados, admitem que o governo teme a ocorrência de novos crimes políticos na esteira do que custou a vida da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ).

“Cada um, não só no Rio, mas também fora dali, que crie seu próprio estado de exceção”, ouvi de uma delas, ontem.

O alvo são ativistas políticos que defendem os direitos humanos.

A morte de Marielle está sendo considerada pelo governo como uma clara resposta à intervenção federal no Rio.

Pela primeira vez, segundo o raciocínio oficial, o crime organizado sente-se desafiado e não gosta nem um pouco do que vê.

O tráfico de drogas e as organizações paramilitares (milícias) não contavam com mudanças tão radicais na cúpula da segurança pública do Rio. E as mudanças apenas começaram.

Assim, a morte de Marielle seria o primeiro e forte sinal do que poderá vir por aí.

O raciocínio não faz sentido se se considerar que são os ativistas pelos direitos humanos que criticam a intervenção militar nos moldes em que foram colocadas. É

uma ação em que, no final, apenas os pobres da periferia vão pagar a conta.

Nesse sentido, por que o crime organizado os eliminaria?

Mas essa análise, vista de outra perspectiva, faz sentido. O governo tem interesse no fortalecimento da intervenção.

Não foi certamente por acaso que o comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, disse que a morte de Marielle reformou o importância da intervenção no Rio de Janeiro.

“Esse crime é mais um de tantos milhares que afetam o dia a dia da população. Portanto é um trabalho extremamente detalhado. Tem de ser amplo, profundo e de longo tempo para nós recuperarmos a percepção de segurança de que a população brasileira precisa”, afirmou.

São opiniões dadas no escuro, já que não foi divulgada uma única informação consistente sobre quem mandou matar Marielle — e por que ela foi morta.

O que se sabe é que ela defendia exatamente o oposto do que propõe o governo — valorizar a intervenção.

No apartamento de Paula Lavigne, numa reunião com artistas, intelectuais e jornalistas que fazem parte de um grupo político, o Movimento 342, dia 22 de fevereiro, ela criticou os efeitos da intervenção.

Lembrando que é moradora da comunidade da Maré, que esteva sob ocupação do Exército, Marielle disse que, para votar nas últimas eleições, teve que passar por tanques.

Isso tem impacto, naturalmente.

“O que nos ameaça é o tanque e a ponta do fuzil”, disse.

A vereadora anteviu o acirramento da disputa política, tendo a intervenção militar como eixo dos debates.

Minutos antes de ser morta, no debate com mulheres negras que movem as estruturas da sociedade, na Casa das Pretas, ela outra vez criticou a intervenção.

Disse que estavam sendo feitos experimentos, e a Vila Kennedy é um desses laboratórios. Ela denunciava que operações como as da Vila Kennedy acabam justificando o extermínio de jovens pobres das comunidades. E só. Não mexe nas estruturas do crime.

“Mas é a cidade toda que precisa ser cuidada, e a gente sabe que não está sendo. Então, os nossos corpos, o nosso transitar, sempre ficam ameaçados”, disse.

Por isso, queria encerrar o encontro antes das 21 horas o encontro, para que todos chegassem em casa sem correr riscos. Ironia da situação: ela própria não chegou.

Em vida, Marielle defendeu outra abordagem para enfrentar o problema da violência extrema — é preciso mexer nas estruturas da sociedade.

Sua morte tem sido usada para justificar medidas que ela combatia.

Isso explica por que a Globo faz uma cobertura em que a mostra como se Marielle fosse candidata à beatificação no Vaticano, e também dá uma pista sobre o que pretende a fonte de Noblat:

Eles querem endurecer mais, e para isso usarão o cadáver de Marielle.

Por ora, bastaria esclarecer o crime — quem matou e por que. Existem imagens, o ponto de partida da investigação está facilitado.

Mas, em vez de respostas, as autoridades responsáveis pelo laboratório em que se transformou o Rio de Janeiro jogam mais dúvidas e suspeitas.

Reforçam o clima de medo.

E o medo, como ensina Frank Underwood em House of Cards (uma série da Netflix sobre poder), gera o ambiente perfeito para conquistar votos.

Disse Frank Underwood, ao encerrar a quarta temporada:

“Nós não nos submetemos ao terror, nós fazemos o terror”