
POR TIAGO BARBOSA
O avanço da luta por igualdade e respeito às questões de identidade cassou a liberdade ilimitada do humor para fazer rir com piadas de conteúdo ofensivo e discriminatório.
Referências calcadas na ridicularização racial, sexual ou social têm sido continuamente expurgadas de formatos outrora comuns sob pena de submeter autores à execração pública por uma sociedade atenta e intolerante aos maus-tratos verbais.
Mas o despertar civilizatório não é unânime. É comum testemunhar stand ups e manifestações de humoristas repletos de expressões preconceituosas e menções hostis a fatias da população já historicamente oprimidas.
Comentários racistas, misóginos, homofóbicos ou oportunistas confrontam o bom senso sob o pretexto frágil de enfrentamento ao “politicamente correto” – expressão geralmente reduzida a censura criativa por quem se revela indiferente à dignidade alheia.
O debate sobre o valor do riso extraído da dor humana – mesmo quando o autor faz da própria vivência dolorosa a origem da comédia – ganhou contornos inéditos e inquietantes, recentemente, com a performance arrebatadora da humorista australiana Hannah Gadsby no especial Nanette, escrito e performado por ela, desde 2007, e exposto ao crivo do mundo pelo catálogo da Netflix neste ano.
A comediante se tornou referência instantânea na zona de observação sobre a condição humana ao examinar as fronteiras do humor sob uma premissa impossível de ser ignorada: exumar os próprios traumas no palco para divertir em forma de piadinhas não ajuda a superá-los e soa como licença cômica a perpetuação de práticas discriminatórias.
Hannah faz do show uma reinvenção do stand up ao colocá-lo a serviço do ativismo feminista e LGBTQ e distanciá-lo do humor autodepreciativo – característica frequente do gênero.
A força do especial é consequência da sagacidade dela em se apropriar das técnicas do humor para descontrui-lo enquanto desloca suavemente o eixo do show – as piadas sobre as situações sofríveis pelas quais passou cedem espaço a um manifesto com tons biográficos, ora ácido, ora engraçado, contra machismo, homofobia, misoginia, abusos sexuais e sobre saúde mental.
Hannah faz da apresentação o próprio lugar de fala e deixa a plateia em transe ao exercer pleno domínio da comédia – enquanto desfia tiradas bem-humoradas, explica como a técnica de alternar tensão e alívio gera o riso, mas não abre mão dos recurso para denunciar a gravidade pública e particular de condutas preconceituosas forjadas na opressão masculina.
O efeito é tão devastador quanto surpreendente: o deboche de si evolui de forma sutil para a ridicularização do machismo, da misoginia e da homofobia.
Hannah se despe da proteção do humor, mas quem fica nu e exposto a verdades dolorosas é o “homem branco e heterossexual”, tutor de uma história regada a objetificação feminina manifestada do dia a dia às artes.
“A história da arte ocidental é de homens pintando mulheres como se fossem vasos de carne e seus pintos, as flores”, dispara a humorista formada em história da arte, sobre a nudez feminina característica de obras icônicas. “Misoginia é um transtorno mental? Sim. Especialmente se você for um homem heterossexual”, ironiza.
A voz dela ressoa anos de uma vivência marcada pela violência do preconceito. Nascida na Tasmânia, uma comunidade extremamente conservadora e religiosa da Austrália, manteve-se por anos no armário porque a homossexualidade era tratada como crime até 1997 – e ela desabafa sobre como a pressão social faz a pessoa discriminada introjetar a deturpação do conceito. Foi espancada, abusada sexualmente e até então jamais havia revelado a identidade sexual para a avó.
O passado de sofrimento era costumeiramente embalado na comédia para abastecer os shows da artista, em atividade no ramo desde 2006. Mas a capa se tornou prisão porque as visitas ao passado de Gadsby ficaram acorrentadas à superficialidade dos truques da comédia.
Em Nanette, ela transcende o conceito de stand up ao tachar o riso como paradoxo de um sofrimento cíclico e jamais superado. E se despede do humor em silêncio – embora a aposentadoria consagre o ápice da carreira só alcançadl pela catarse gerada com o exercício da arte de fazer graça.
A performance de Hannah já tem sido comparada a rupturas artísticas do calibre do mictório de Marcel Duchamp. Mas, disso, se encarrega a história. A contribuição mais imediata do show é mostrar como as feridas abertas pelo preconceito não saram com o paliativo adocicado do humor.
E isso, em tempos de intolerância, já é um bom motivo para sorrir.