A Superinteressante e o zeitgeist

Atualizado em 11 de fevereiro de 2022 às 18:41
Dinossauro demais na capa, na minha avaliação

VIVI TRÊS EXPERIÊNCIAS memoráveis na minha carreira, de forma diferente em cada uma delas.

Se fosse fazer uma metáfora futebolística, eu diria que a primeira foi como aspirante, a segunda como jogador e a terceira como treinador.

Sobre as duas primeiras, a Veja nos anos 1980 e a Exame na década seguinte, já escrevi.

A terceira foi a Superinteressante, de 2000 a 2003.

Eu fora deslocado da Exame para o cargo de diretor editorial das revistas masculinas da Abril. Deixar a Exame foi uma das decisões mais duras de minha carreira. Assim como ao receber o diploma na faculdade você sabe que está se despedindo de uma fase única para ingressar na vida adulta, eu tinha clareza em que a experiência da Exame jamais se repetiria.

Tudo dava certo. A revista inovava e era reconhecida por isso, nas vendas em bancas, nas assinaturas e na publicidade. Pegamos um título que agonizava sem rumo, a VIP, e demos um choque de originalidade que a tornou uma revista masculina em sintonia com o que se fazia de mais interessante na área no mundo – especificamente, títulos ingleses que reinventaram a leitura para homens, como Maxim e FHM. Lançamos um novo título, a Você S.A., de olho numa classe nova de executivos globalizados que precisavam de uma revista que os representasse e orientasse. Foi um sucesso instantâneo.

Eu estava realmente indeciso diante do convite para assumir o novo cargo. Sabia o quanto tinha trabalhado duro para que tudo funcionasse. Era um time espetacular em todas as áreas, a começar pelo diretor-geral, JR Guzzo, e seguindo pela administração, com Jairo Mendes Leal, e pela publicidade, primeiro com Paulo César de Araújo, o PC, e depois com Claudio Ferreira, o Claudinho. No mais puro espírito guzziano, era um grupo voltado para soluções e com aversão a problemas, o que não nos impedia de resolvê-los quando surgissem.  Quanto à redação propriamente dita, era uma beleza, uma mistura da experiência de gente provada como Clayton Netz e Nely Caixeta com a inquietação jovem de talento que estavam explodindo, como Claudia Vassallo, André Lahoz e Helio Gurovitz.

Os dois primeiros comandam a revista hoje, e devolveram a ela o brilho perdido no período em que foi editada por Eduardo Oinegue. Faltava  familiaridade com jornalismo de negócios a Oinegue, um excelente jornalista de revista semanal de informações, com uma passagem vitoriosa pela Veja na qual entrou como repórter da Veja São Paulo e saiu como redator-chefe.  Reformas editoriais podem funcionar ou não, e aquela simplesmente não andou. O próprio Oinegue, ao sair depois de pouco mais de um ano no cargo, recomendou Claudia para sua posição, rendido à combinação de talento e determinação dela  – virtudes que me haviam feito defendê-la, sem sucesso, para minha sucessão em 2000.

Largar aquele mundo era difícil. Eu tinha a impressão de que poderia sair para tomar um café e voltar na quinzena seguinte que tudo estaria funcionando. Guzzo, meu chefe, em nenhum momento me disse para não ir. É uma qualidade dele que procurei incorporar em mim: jamais ser um obstáculo a um crescimento de alguém na empresa, ainda que isso signifique um desfalque pessoal para você. Ele próprio não aceitaria aquele convite: muitos anos antes, no planejamento de sua carreira na Abril, Guzzo decidira trabalhar no jornalismo de informações ou de negócios, isso quer dizer, Veja e Exame. Meus interesses abrangiam outras áreas além daquelas.

Um telefonema de Roberto Civita, dono e editor da Abril, acabou sendo decisivo. “Torço para que você aceite o convite, Paulíssimo.” Paulíssimo é como RC me chama. Eu estava dividido: 51% de mim diziam para ficar na Exame, 49% me empurravam para as masculinas. Aquele telefonema inverteu os números e eu fui.

Como diretor editorial das masculinas, eu ia lidar com uma pequena multidão de títulos. Era uma experiência nova. Havia ali algumas das revistas mais tradicionais da casa, como a Playboy e a 4 Rodas. Meu xodó, a VIP, seguia comigo.

Mas foi num outro título, o qual eu jamais lera, que enxerguei possibilidades realmente boas: a Superinteressante.

A Super, logo descobri, é o sonho do editor: cabe virtualmente tudo nela. Basta que os assuntos façam jus ao nome da revista. Não me parecia que fizessem. Tecnicamente, era bem feita pela equipe liderada por André Singer. Mas em minha avaliação faltava inquietação, surpresa, provocação.  Faltavam os riscos sem os quais uma publicação acaba se repetindo, e sobrava circunspecção. “Muitos dinossauros na capa” foi minha análise inicial. Como negócio, fazia 15 anos — ou seja, desde que surgira — que a Super ou perdia dinheiro ou dava um lucro tímido. Por esse retrospecto, num momento em que o portfólio da Abril foi submetido a um crivo de rentabilidade, a Super era uma candidata natural à extinção. Numa imagem usada pelo então presidente executivo da Abril  Ophir Toledo no final dos anos 1990 e ouvidas com extrema apreensão pelos editores da empresa, a Super era uma das “crianças adoentadas”. Talvez para suavizar o efeito assustador, a expressão vinha em inglês: sick children.

O editor que escolhi para a Super, numa foto de 1999 quando ele ainda era magro

Algumas conversas com Singer me convenceram – e a ele também – que tínhamos visões inconciliáveis. Era preciso encontrar um editor, alguém que personificasse a nova cara da Super. Na Exame, havia um jovem versátil.  Fizera MBA no Japão, durante o qual escrevera na Exame artigos em que defendia um Brasil mais meritocrático e menos cartorial, mais liberal e aberto ao mundo e menos provinciano e protecionista. Voltando ao Brasil, fora contratado como diretor de marketing da Exame, mas era evidente que o que ele queria mesmo era ser jornalista. Gaúcho, imaginara, pela experiência de Porto Alegre, que era impossível viver de jornalismo. Mas em São Paulo conhecera uma situação diferente. Fora tudo, tinha escrito um romance, tocava bateria e, ao jogar futebol com o pessoal da Exame, vestia um impecável uniforme do Internacional que contrastava com seu jogo lento e fraco.

Era ele. Adriano Silva era o nome.

Uma conversa bastou. Começava ali a terceira experiência singular da minha carreira: a Superinteressante. Dela guardo uma capa que ganhei de presente da turma, emoldurada e pendurada em meu apartamento de São Paulo. Parte reconhecimento, parte gozação, sou caracterizado na capa como “Superchefe”, e as chamadas fazem menção a coisas minhas naqueles dias. Por exemplo, o hábito de despachar, nas tardes de sexta, de uma academia de tênis, nos intervalos dos sets.

Sob Adriano e uma equipe de mente aberta e alerta, a Superinteressante faria uma coisa que inevitavelmente leva ao sucesso de toda publicação: captar o zeitgeist, o espírito do tempo, em alemão. Da ecologia ao mundo digital, do vegetarianismo ao budismo, da morte assistida à vida simples, da medicina ayurvédica à voracidade suspeita da bilionária indústria dos remédios, os editores da Super capturaram os temas que comoviam os leitores no início do novo milênio.

E por isso fez história — que é o tema do próximo capítulo.