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POR TIAGO BARBOSA
A gente costuma identificar o machismo em situações marcadas por casos nítidos de violência verbal, física, psicológica ou desrespeito aos direitos femininos.
Mas sente certa dificuldade de perceber quando ele prospera encoberto sob a capa de uma aparente felicidade conjugal tomada como retrato da família – essa instituição considerada imutável pelos puritanos e usada por eles para legitimar retrocessos, como mostra o Brasil de Jair Bolsonaro e Damares Alves, a ministra da sexualidade cromática.
O filme A Esposa (de Bjorn Runge), em cartaz no cinema e vencedor do Globo de Ouro de Melhor Atriz de Drama pela atuação sufocante de Glenn Close, oferece boa dose de reflexão sobre o tema ao descascar as camadas de uma relação abusiva e fazer aflorar o peso da resignação soterrada pelo tempo em nome de um falso equilíbrio a dois.
O centro da trama são os dilemas de uma prestativa e submissa esposa de um escritor renomado, levada a reconsiderar a vida após o marido ganhar o Nobel de Literatura.
Glenn exala capacidade ao compor uma personagem frustrada pelo fardo da autoanulação: aparece em cena descontente, inquieta, impaciente, refratária à liturgia das conquistas do esposo e intolerante às bajulações a ele direcionadas.
O inconformismo é estranho ao clima festivo e divide a personagem entre estado de espírito e o jogo de cena da celebração conjugal e familiar. Entre ser e representar. Entre condescender e protagonizar. Entre ficar à luz ou à sombra do marido.
O impasse é uma sessão reprise do passado de silenciamento e metáfora da própria condição feminina sob domínio de regras patriarcais.
Durante anos, ela vestiu o papel das limitações machistas, suprimiu desejos, aptidões e encarnou o figurino de companheira solícita, atenciosa, encorajadora e dona de casa. Sublimou a vida para virar função: esposa.
Durante séculos, as mulheres foram forçadas à submissão de sociedades incapazes de enxergá-las como seres iguais, merecedoras de respeito e dignas de direitos. Amargaram humilhação, maus-tratos e violência sob uma concepção machista de família. Eram tratadas como peças a serviço de uma função.
Ao receber o Globo de Ouro, Glenn amarrou ficção e realidade. “O que aprendi com toda esta experiência é que nós, mulheres, somos cuidadoras, isso é o que se espera de nós. Temos nossos filhos, nossos maridos e, se tivermos sorte, nossos pais. Mas temos que encontrar aquilo que nos faz sentir realizadas. Temos que seguir nossos sonhos e dizer: eu consigo e tenho o direito de conseguir”.

As palavras ressoam como manifesto e resistência diante do teimoso cerceamento à liberdade e à representatividade feminina materializado em omissões e retrocessos de políticas públicas e condutas sociais tipicamente machistas.
O Brasil sob o crepúsculo de Michel Temer, Bolsonaro e Damares é reflexo dessa chancela ao obscurantismo. É o país do louvor à “bela, recatada e do lar”, à primeira-dama bibelô, à menina-princesa vestida de rosa – embalagem física, social e psicológica da mulher para atender a um ideal machista farsesco de família no qual elas devem ser “puras, submissas e úteis”.
A concretização desse estado anômalo e desigual passa pela supressão das oportunidades, valorização da obediência e inibição da coragem de lutar pela igualdade – ou, como relincha o filho do presidente brasileiro, pela proibição de ensinar feminismo nas escolas.
Esse desequilíbrio de gênero soa ainda mais cruel ao atravessar as relações afetivas e domésticas porque se funde a amor, sexo, filhos, familiares – elementos capazes de gerar alegria e forçar a inibição do franco enfrentamento ao machismo.
A sinuosidade do filme está em realçar essa contraposição entre a “vida feliz” da personagem – aparentemente valorizada e desejada pelo marido (interpretado por Jonathan Pryce) – e a inquietude de se sentir eclipsada pela conduta pessoal e profissional desse mesmo companheiro.
A Esposa desmonta as engrenagens criadas para desencorajar o protagonismo da mulher e naturalizar a projeção masculina às custas da invisibilidade feminina. Faz pensar sobre como a dominação masculina distorce o sentido da felicidade porque oprime até quando gera momentos alegres e subverte o conceito de liberdade ao impedir o outro de ser.