A revelação dos novos chats secretos de Deltan Dallagnol confirma a série de reportagens que o DCM publicou há mais de um ano, sobre os furos e os abusos no processo sobre o sítio de Atibaia.
Para ler as reportagens, clique aqui.
Os chats mostram que Deltan tinha uma ideia equivocada sobre a relação do caseiro, Élcio Pereira Vieira, o Maradona, com o proprietário do sítio.
Apostava que Maradona era corrupto.
“Vcs checaram o IR de Maradona? Não me surpreenderia se ele fosse funcionário fantasma de algum órgão público (comissionado)”, disse, por meio do Telegram. “Pede pro Roberto Leonel dar uma olhada informal.”
Roberto Leonel era o responsável pela área de inteligência da Receita Federal em Curitiba e se tornou do círculo de confiança de Dallagnol e também de Sergio Moro, que o levou para a presidência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) tão logo assumiu o Ministério da Justiça, no governo Bolsonaro.
Leonel era, em outras palavras, um tentáculo da Lava Jato na Receita Federal.
E, como se pode concluir a partir de suas mensagens a Dallagnol, Leonel transitava pela tênue linha que separa a legalidade da ilegalidade.
Em outro caso, o atual presidente do Coaf contou que sua relação (promíscua) tinha despertado a suspeita de um superior hierárquico:
“Ele quis saber pq fiz etc e se tinha passado está inf a vcs”, disse Leonel. “Disse q NUNCA passei pois não tem origem ilícita suspeita !!! Por favor delete este assunto por enquanto”, relatou a Dallagnol.
Tanto Leonel quanto Dallagnol e sua turma investigavam pessoas, não fatos, o que é uma perversidade jurídica, o embrião de todos os abusos.
Fatos criminosos é que devem ser investigados e, a partir daí, identificar e descrever autoria.
Investigar pessoa para verificar se ela cometeu algum ilícito é próprio de sistemas autoritários, em que não há garantias constitucionais e todos estão sujeitos ao arbítrio dos investigadores — o que é, na essência, a doutrina da Lava Jato.
No caso de Maradona, se deram mal. O caseiro é um funcionário antigo do sítio Santa Bárbara.
Pelo que contam os vizinhos, com quem conversei, está lá desde que os donos eram Adalton e Neusa Emílio Santarelli, há cerca de quinze anos.
Ele veio de Brumadinho, na Bahia, e ganhou o apelido Maradona por ser bom de bola, um craque nos torneios de várzea da região.
Era jardineiro, morava com o irmão mais velho, até que foi contratado para cuidar do sítio, um refúgio de fim de semana dos Santarelli.
Quando o casal vendeu a propriedade para Fernando e Jacó Bittar, ele foi convidado a permanecer na propriedade.
Nunca foi funcionário público, como suspeitava Dallagnol. Nem sequer prestou serviço para alguma prefeitura.
Por conta de seu trabalho no sítio, ele e a família foram alvo da violência da Lava Jato.
Fotos pessoais apreendidas pela Polícia Federal e pelos procuradores foram vazadas para a imprensa.
Em uma, aparecia até a mãe, que ficou traumatizada por ter o rosto divulgado no Brasil todo, como se fosse criminosa.
Januário Paludo, o veterano dos procuradores, tirou a cunhada de Maradona de dentro de casa, na zona rural de Atibaia, e a levou para depor, juntamente com o filho de 8 anos, na sede do sítio de Atibaia.
Queria que ela disse algo para incriminar Lula, já que tinha prestado serviço como faxineira.
Vídeo divulgado pelo DCM mostra a criança com os olhos arregalados de medo enquanto a mãe é interrogada.
A ideia, ao que tudo indica, era tentar demonstrar que o sítio pertencia a Lula.
A revelação desse abuso obrigou Moro e pedir explicações do Ministério Público Federal.
O MP deu explicações com incrível desfaçatez: disse que não podia afirmar se a criança estava presente no depoimento.
Era só ver o vídeo do depoimento para constatar que a criança estava lá, com expressão de medo.
A cunhada de Maradona nunca foi chamada para dar sua versão nesse suposto procedimento para investigar o caso.
Corregedoria do MP se movimentou? Pausa para gargalhada.
O corregedor da época, como mostrou a Vaza Jato no episódio das palestras, funcionou como advogado de Dallagnol.
A turma de Dallagnol, com Paludo na linha de frente, não conseguiu arrancar da cunhada de Maradona a declaração de que era a família de Lula quem pagava a diária da faxina.
Lula era apenas hóspede, como contou. O patrão era Fernando Bittar.
Isso não impediu que a Lava Jato vazasse a fake news de que o ex-presidente era proprietário de fato do sítio e, mais tarde, fizesse constar essa mentira na denúncia que levou à segunda condenação de Lula, num processo conduzido por juiz parcial, Sergio Moro, e sentenciado por sua substituta, a agressiva Gabriela Hardt (“Se começar nesse tom comigo, a gente vai ter problema”, frase que a honestíssima Michelle Bolsonaro adora).
Sem provas, restou o testemunho do co-réu Léo Pinheiro, corrupto confesso, sogro do atual presidente da Caixa Econômica Federal — homem do círculo de confiança de Bolsonaro.
Lula foi condenado, como até a balconista do xerox da esquina do prédio da Justiça Federal em Curitiba já sabia que seria.
Era condenação anunciada.
A Lava Jato investigou pessoas, já com o veredito decidido antes que o processo se iniciasse.
Nesse caso, não encontrou o que queria. Mas, em casos assim, sempre pode contar com um Léo Pinheiro ou um Palocci para dizer o que necessitava ouvir ou um diretor da Odebrecht para quase coagir a construir um relato (leia mais aqui).
Numa interpretação rigorosa, pelos critérios que Dallagnol aplica a adversários, vê-se que a Lava Jato pode ser considerada uma organização criminosa.
Uma organização criminosa com imunidade para delinquir, em nome do estado que empoderou Bolsonaro.