A violência sexual no Marajó não é nada do que a ministra Damares diz

Atualizado em 25 de setembro de 2019 às 15:39

Publicado originalmente na Agência Pública:

Ainda não existem dados oficiais atuais sobre a exploração ou sobre a violência sexual contra crianças e adolescentes especificamente no Marajó, segundo o Ministério Público (MP) do Pará, que está fazendo um levantamento que deve se tornar público nos próximos meses. As dificuldades são muitas – do acesso às comunidades ao silêncio, que resulta em subnotificação, decorrente de uma séria desconfiança nos órgãos públicos, e da precariedade da rede de enfrentamento e proteção às vítimas da exploração sexual.

Em São Sebastião da Boa Vista, por exemplo, um município com população de mais de 21.500 habitantes, não há delegado há mais de um ano. A polícia e o Conselho Tutelar não têm barco. Não há defensoria pública, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) não funcionam como deveriam, e alguns profissionais acabam acumulando múltiplas funções, como é o caso da promotora de justiça Patrícia Carvalho Medrado.

Desde 2017, ela está em São Sebastião com uma equipe composta por mais duas pessoas, recebendo as denúncias que deveriam ser feitas na delegacia, atuando nos casos e fazendo um trabalho de conscientização sobre a violência sexual em dezenas de comunidades rurais, fiscalizando escolas e organizando audiências públicas. O Conselho Tutelar conta com apenas quatro pessoas, em esquema de plantão, para atender a cidade e o interior. “E olha que a situação aqui de São Sebastião está ótima perto de outros lugares do Marajó. Tem lugares que não tem servidor, que a internet é muito pior, que também não têm delegado, também não tem Defensoria… A coisa aqui é muito difícil e ainda assim não é uma das realidades piores na região”, diz Patrícia.

A sala de espera da Vara Única de São Sebastião estava lotada naquela terça-feira abafada, com todas as cadeiras ocupadas, pessoas de pé e do lado de fora, esperando atendimento. Homens, mulheres, crianças e bebês. Entre os casos que seriam julgados naquela tarde, havia dois de violência sexual contra meninas, um tendo o pai como agressor e outro envolvendo o padrasto, que havia sido preso e aguardava em uma das salas. As vítimas também esperavam o momento da audiência por ali.

Uma das histórias, de duas irmãs que vou chamar de Mariana e Luíza, me impressionou, não apenas pela violência cíclica, mas também por ser um retrato de todas as dificuldades enfrentadas com a rede de proteção. Mariana começou a ser estuprada pelo pai aos 7 anos. Sua mãe sabia, mas tinha medo do companheiro e não o denunciava. Aos 12 anos, a menina engravidou e teve o primeiro filho. Um ano depois, voltou a engravidar do pai. Nenhuma das duas gestações ocorridas aos 12 e 13 anos chegou ao Conselho Tutelar, como deveria acontecer. Dessa vez, a menina teve complicações no parto e precisou ficar na cidade por um tempo – sua família era de uma zona muito afastada e de difícil acesso – e tentou fugir com um rapaz.

O pai descobriu, pegou as duas crianças dela e levou embora, proibindo Mariana de ver os filhos. O pai então passou a abusar sexualmente da filha mais nova, Luíza, de 7 anos. Aos 11, ela também engravidou. Sabendo que estava sob suspeita, o pai levou a filha para parir em outro município e apresentou documentação falsa. Os médicos suspeitaram e acionaram o Conselho Tutelar. Ele fugiu com a menina para um terceiro município, onde foi detectado que o bebê em sua barriga tinha morrido. Novamente o Conselho Tutelar foi acionado e dessa vez conseguiu buscar a menina.

“Ela foi operada e fomos buscar. A viagem foi muito cansativa. Eu tive que deitar na embarcação e colocar ela por cima de mim pra ver se não chocava muito, porque ela teve complicações na cirurgia, pra não arrebentar nada”, contou a conselheira tutelar Paula Rodrigues. Para chegar na casa da família, a partir da beira do rio, são duas horas e meia andando no mato. Lá chegando, os conselheiros notaram as duas crianças menores e questionaram de quem eram. O pai disse que eram de uma filha que havia fugido. A partir dessa investigação se chegou ao caso das duas meninas.

“A gente denunciou o pai por estupro de vulnerável e trouxe as duas crianças para morar com a mãe biológica,” contou a promotora Patrícia. “O pai fugiu. E aí que vem toda a falha do sistema de justiça. Demorou-se muito tempo para analisar o pedido de prisão. Quando saiu o pedido, a polícia não tinha lancha para ir até o local. Quando foi, não encontraram ele. Aí a polícia voltou. A gente já tem notícia de que ele voltou pra casa e que a menina tá grávida de novo”, lamenta Patrícia.

Ela aponta também falhas na rede de proteção, que se repetem no caso de Daniela*, que hoje tem 15 anos e mora na casa de uma família que a adotou quando, aos 11 anos, engravidou do pai e foi expulsa de casa pela mãe. Fomos visitar Daniela. Ela é pequena e tímida. Passou quase todo o tempo calada, mas se animou quando Júlia, a fotógrafa, perguntou sobre seu colar. “É do BTS, eles são coreanos, fizeram um show em São Paulo!”. Foi o máximo que quis falar naquele dia. Quando a irmã Henriqueta apareceu, ficou visivelmente emocionada, os olhos marejaram e ela disse que não se lembrava dela. Mas depois “lembrou”.

A irmã ajudou no resgate e acompanhou seu processo de adoção. A bebê, que hoje é criada como sua irmã, não sai do colo da mãe adotiva. Vestidos de princesas e bonecas estão por toda a casa. A promotora Patrícia conta que Daniela passou por uma fase depressiva, em que falava em tirar a própria vida, não aceitava a filha e, segundo o Cras, se negava a receber atendimento psicológico.

“Aí eu chamei a família acolhedora, conversei. Fiquei sabendo que o psicólogo estava dizendo para a menina que a mãe adotiva não era sua mãe verdadeira e que ela tinha que procurar a mãe biológica. A mãe! Que ficou do lado do agressor mesmo com o exame de DNA em mãos e que até hoje paga advogado para o homem. Obviamente ela não queria procurar essa mãe. Então é todo um desserviço, eu tive que judicializar a demanda para que ela tivesse um atendimento psicológico apropriado e contínuo garantido. Os profissionais não estão preparados e, por causa da alta rotatividade de funcionários, nunca dá tempo de treinar essas pessoas.”

Os casos como o de Mariana, Luíza e Daniela, envolvendo familiares, são majoritários em São Sebastião. Em 2019 foram registrados 11 casos, e os conselheiros tutelares falam em 18 atendimentos. Patrícia diz que o número de denúncias tem aumentado, mas que isso não significa que haja um aumento no número de casos: “A maior parte dessas denúncias estão vindo, pela primeira vez, da zona rural e viraram processo. E isso está relacionado a palestras de conscientização que nós temos realizado nas zonas rurais. Antes essas denúncias praticamente não chegavam”.

Saindo do Fórum, a promotora pergunta: “Querem ver o lixão da cidade? Só precisamos atravessar a rua”. A imagem é esta: mais de um quarteirão de lixo a céu aberto, coberto por urubus e cachorros, que saem dali e vão brincar com as crianças no centro da cidade.

A comunidade Nossa Senhora de Nazaré, que faz parte da zona rural de São Sebastião da Boa Vista, já estava toda reunida e com o lanche posto quando encostamos o barco junto à beira. O dia seria dedicado ao encontro “Diálogos do MPPA com a rede de garantia de direitos da criança e do adolescente no combate à violência sexual no arquipélago do Marajó”, uma série de encontros que tem rodado o Marajó. Crianças e adolescentes, que prestavam atenção, alguns tomando nota, eram a maioria do público.

Além das palestras da promotora Patrícia e da irmã Henriqueta sobre o que era, como identificar e a quem relatar o abuso sexual, houve uma palestra da Marinha sobre a importância de proteger os motores dos barcos para evitar o escalpelamento, uma vistoria na escola e no posto de saúde locais, e também uma audiência pública. A vistoria na Escola Municipal de Ensino Fundamental Justiniano Barreto, que atende atualmente mais de 60 crianças, constatou que não havia água na cozinha nem descarga no banheiro, as salas de aula não tinham luz elétrica nem ventiladores, as paredes estavam tomadas por cupins, e os computadores, empilhados por falta de manutenção. A creche era apenas um prédio abandonado. O posto de saúde estava havia anos sem médico.

Era a primeira vez que o poder público, através do MP, chegava à região e todos quiseram falar na audiência pública. A maioria das reclamações era sobre roubos de piratas nas embarcações e tráfico de drogas e, também, sobre a dificuldade em acessar a polícia. Foi então que algumas adolescentes, incentivadas pela irmã Henriqueta, se levantaram e pediram a palavra. Elas queriam que a delegação também fizesse vistoria na escola delas, que como a outra não tinha luz nem ventilador. Elas contaram que a escola alagava quando chovia e fervia quando estava sol. Disseram que não tinha merenda porque os mantimentos eram saqueados antes de amanhecer.

Chamamos as meninas para conversar e ouvir o que elas tinham a dizer sobre o tema do evento e se tinham conhecimento da fala da ministra sobre a falta de calcinhas. Não tinham nem acreditavam que alguém pudesse dizer uma coisa assim. Era um grupo de cinco meninas entre 13 e 16 anos: “A gente tem conhecimento de meninas da nossa escola que foram abusadas por familiares e engravidaram, e também sabemos de meninas que saem com homens mais velhos por dinheiro, mas não tem nada a ver com falta de calcinha! Como pode alguém dizer isso?”. Quando perguntei o que elas queriam ser quando crescessem, disseram “delegada”, “advogada”, “lutadora”, “juíza”. Apenas uma queria ser dançarina. Por que essas profissões? “Para proteger nossa comunidade.” Porém, quando perguntei se elas sabiam a quem poderiam recorrer caso sofressem algum tipo de violência, a resposta foi unânime: “Não”.

No caminho de volta à cidade, a promotora atendeu ao pedido das meninas e parou o barco para vistoriar a escola Josiel Ferreira Santana, que atende 190 alunos da pré-escola ao 9o ano. A situação era ainda mais grave: a falta de luz e de ventilador nas salas relatadas pelos adolescentes fazia com que eles tivessem apenas duas horas de aula por dia, porque depois das 9 da manhã ninguém aguentava o calor. Não tinha merenda e havia morcegos, cobras e baratas, além de fezes de animais na dispensa que guardava os alimentos. Paredes com infiltrações, rastros de cupins, carteiras se desfazendo. O vigia que guardava a escola dizia que chegou a levar com ele a merenda à noite e trazer de manhã para ninguém roubar (quando chegava a merenda) e que eles já tinham pedido melhorias muitas vezes, mas nunca foram atendidos. Disse que havia crianças que vinham de locais remotos, a duas horas de barco dali – como a menina que queria ser dançarina. A escola seria interditada.

“Falta política pública para todos os segmentos, mas principalmente para a infância. As pessoas não veem a infância como futuro. ‘Vamos investir na educação, vamos investir em saúde, vamos investir nessas crianças para que a gente consiga sair dessa miséria.’ Falta interesse político e com certeza a falta de calcinha não tá nem na lista das necessidades das meninas e dos meninos aqui do Marajó. São meninos sofridos. São meninos que não têm oportunidade na vida. Muitos vão às vezes pra escola pra comer, quando chegam na escola não tem merenda ou, quando tem uma merenda, é uma merenda de péssima qualidade”, disse a promotora Patrícia. “Chegou aqui alguma coisa, alguma notícia do programa “Abrace o Marajó” para vocês, conselheiros tutelares?” “Nada. Nunca nem ouvi falar”, disseram os conselheiros.

“E a senhora, irmã Henriqueta, que roda esse Marajó há mais de dez anos?” “Eu não tenho conhecimento de nenhum ativista da região que foi chamado para dialogar. Mas não sou eu que vou chegar e dizer o que a população precisa. O meu papel, enquanto sociedade civil, é alertar. ‘Crianças, vocês estão estudando bem? A merenda tá chegando aqui?’ ‘Não, não tá chegando.’ ‘Então, vocês precisam falar, reivindicar o que precisam’, como fizemos naquela comunidade.”

E acrescenta: “Nós tivemos, faz um mês, em uma outra região, um outro município aqui de Portel em que a mulher denunciou publicamente a venda de crianças. Seis crianças foram vendidas por uma cesta básica. E esse é um governo que nos traz cada vez mais desesperança. Até por alguns comitês, por algumas iniciativas que já existiam e que estão sendo extintos. Fico extremamente preocupada porque um projeto não nasce assim de uma hora pra outra. Sem ter base, sem ter a participação da população local. É necessário que haja um diálogo. Algumas pessoas estão dizendo que há interesse político nessa vinda do ministério para cá, tanto porque Bolsonaro perdeu a eleição no Marajó quanto para internacionalização. Isso é o que eu ouço por aí. Essa fala da ministra causou muita indignação, principalmente pra nós, que lutamos pelas nossas crianças, e para as comunidades aqui da região. Não só da região, isso causou revolta em muitas partes do mundo.”

A última palavra é da promotora Patrícia: “Abraçar o Marajó é fortalecer a polícia, aumentar o efetivo, colocar batalhões nesses lugares que a gente sabe que o tráfico tá lá organizado. Com internet boa. Fortalecer a rede de proteção. No Marajó profundo, tem crianças que parecem esqueletos humanos morando em casas que não têm parede. As pessoas são mordidas por morcego e muitas morrem de raiva. O Marajó precisa de investimento no material humano dele. Não de fábrica de calcinha”.