Ano sem fim. Por Gilberto Maringoni

Atualizado em 1 de janeiro de 2020 às 10:24
Jair Bolsonaro saúda o povo depois de receber a faixa presidencial. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Publicado originalmente no perfil de Facebook do autor

ANO SEM FIM

ZUENIR VENTURA teve uma boa sacada no título de “1968, o ano que não terminou”. A situação aberta com o crescimento nos protestos estudantis, insatisfações no mundo da cultura, fim da recessão 1965-66 e edição do AI-5 – o golpe dentro do golpe – se prolongaria por vários anos. A vitória da linha dura, o fechamento do regime, a censura oficializada, o equívoco monumental da luta armada, a tortura como política de Estado e o crescimento acelerado do “milagre” são decorrências de um ano intrincado. Aquela conjuntura – tudo indica – se fecharia apenas em 1974, com a esmagadora vitória do MDB nas eleições e com os primeiros sintomas de crise econômica.

A cronologia de calendário estabelece períodos de voltas da Terra – não a plana! – em torno do sol e serve para nos organizarmos em função do ano fiscal, da progressão escolar, do tempo biológico da existência e de planejamentos da vida cotidiana. Mas é falho para classificar processos históricos.

LENIN CAPTOU ISSO ao definir o tempo político. Segundo ele, as crises revolucionárias são períodos em que os dias parecem meses e os meses parecem anos, tais as reviravoltas operadas em exíguos segmentos de tempo, em conjunturas muito específicas.

Hobsbawm classificava o século XX como “curto”. O século político, em sua concepção, começara com a deflagração da I Guerra, em 1914, e terminaria em 1991, com o fim da URSS. Os dois marcos expressam alterações em camadas tectônicas da correlação de forças planetárias e seriam mais úteis para se entender o que foi esse trecho da história contemporânea do que os limites quase aritméticos 1900-2000.

VAMOS ENTRAR EM 2020. Vamos desejar feliz ano novo uns aos outros. Mas, com um mínimo de perspectiva histórica, arrisco – muito – a dizer que vivemos ainda nas águas de 2015, este também um ano que não terminou.

As sementes da pirambeira histórica em que nos metemos, com uma crise econômica renitente – com espasmos e soluços de melhorias que não se concretizam para as maiorias – estão no ano em que se optou pelo ajuste e pela recessão como método para rearranjar as posições de força na sociedade. Foi em 2015 que se escolheu contrair a economia em tempos de desaceleração mundial, provocando a maior depressão da República, e tirar potência dos de baixo, via elevação abrupta do desemprego. O resultado foi previsível: os enfrentamentos na sociedade favoreceram ainda mais os que já eram favorecidos.

O GOLPE DE 2016 só pode ser compreendido pelo fato do ajuste fiscal – que contrariava todo o discurso de campanha – ter acarretado o rompimento do governo com grande parte de sua base social. Com a pista livre, o capital jogou bruto. A avenida que se abriu para o atraso tem de ser examinada no contexto das decisões do ano anterior. A prisão de Lula e o resultado das eleições de 2018 foram puxadinhos de 2015 feitos a quente.

Há quase cinco anos destampou-se o esgoto pelo qual todos os nossos monstros e fantasmas de país injusto, racista e escravocrata puderam sair a luz do dia.

Nossa luta em 2020 não é por um ano idealmente novo. Sejamos realistas. É para encerrar 2015 e sua cornucópia de erros, opções atabalhoadas, devastação política e econômica e fortalecimento de tudo o que há de retrógrado na vida nacional.

De verdade, para 2020 começar, 2015 tem de terminar!

Feliz ano novo.

Michel Temer passa a faixa presidencial para o novo presidente, Jair Bolsonaro – Marcelo Camargo/Agência Brasil
Gilberto Maringoni
Gilberto Maringoni, professor de Relações Internacionais da UFABC e candidato do PSOL ao governo de São Paulo, em 2014