O que não aprendemos com a Argentina sobre torturadores. Por Moisés Mendes

Atualizado em 25 de fevereiro de 2020 às 13:38
Golpe de 64, que deu origem à ditadura militar. Foto: Wikimedia Commons

Os argentinos se dedicam a um debate inimaginável no Brasil. Na sexta-feira da semana passada, o presidente Alberto Fernández discursou em cerimônia em homenagem a militares que participaram da força de paz das Nações Unidas no Chipre.

Fernández pode ter se empolgado diante dos oficiais e fez uma declaração controversa:

“Toda a Argentina deve virar uma página que nos distanciou (dos militares) por muito muito tempo, por causa da má conduta de alguns, e hoje podemos dizer que nossos homens e nossas mulheres do Exército e das Forças Armadas nasceram como oficiais da democracia”.

O presidente cometeu um erro grave, segundo as Mães da Praça de Maio, movimentos de direitos humanos e políticos de esquerda, que o envolveram no primeiro embate com as forças que o apoiam.

A expressão de Fernández (“Toda a Argentina debe dar vuelta una página”) equivale, pela leitura das esquerdas, a dizer que o país precisa virar a página dos desmandos e dos crimes dos militares.

E se sabe que na Argentina os militares tentaram, mas não conseguiram, como aconteceu no Brasil, escapar de punição dos crimes que cometeram e são considerados delitos graves de lesa-humanidade. Lá, os chefes ditadores e todos os seus cúmplices, incluindo torturadores, são punidos até hoje,

Fernández deu entrevista ao jornal Página 12 com uma explicação. O que quis dizer no discurso é que a Argentina não tem mais oficiais da ativa formados na ditadura. E que por isso, porque os antigos oficiais estão na reserva, o país deve se reconciliar com todos.

Foi um exagero, segundo as esquerdas. A ditadura acabou em 1986. Ainda existem oficiais formados até ali.

Fernández foi adiante e afirmou que todos os crimes cometidos durante a ditadura devem ser punidos pela Justiça. A página virada não era de jeito nenhum uma sugestão de anistia política informal.

O que importa é que os argentinos debatem qualquer insinuação de perdão aos militares e têm um jornal de esquerda, o Página 12 (entre tantos outros), para que a pauta não desapareça.

O Brasil não tem mais disposição e força de vontade para esse tipo de debate, até porque Bolsonaro elogia Brilhante Ustra impunemente, manda um filho dar comendas a um miliciano, militariza o governo (tem dois generais da ativa no primeiro escalão), outro filho e um ministro pedem a volta do AI-5, e fica tudo bem.

O brasileiro, que tanto esnoba os argentinos, é um ciumento do que eles fazem pela defesa da democracia, o que inclui a punição de ditadores, assassinos e torturadores e a rejeição a qualquer ideia em contrário.

Moisés Mendes
Moisés Mendes é jornalista em Porto Alegre, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim) - https://www.blogdomoisesmendes.com.br/