
“Já falei muito de mim. Agora fala de você.”
Não é a primeira vez que ouço a colocação acima, e nem será provavelmente a última. Estou no Getti, um simples e bom restaurante italiano em Marylebone High Street, em Londres. Quem me pede paradoxalmente que fale é a pessoa que estou entrevistando, a escritora inglesa Anne Perera.
Anne é autora de “O Menino de Guantanamo”, um relato do horror que foi e é a prisão que os Estados Unidos usaram em plena Cuba em sua assim-chamada “Guerra ao Terror”. O livro conta a história de Khalid, um garoto inglês de ascendência paquistanesa. Ele vai com os pais visitar parentes no Paquistão. Lá, sem que ele saiba por que, é preso como suspeito de terrorista. Não é julgado, não tem direito a advogado. Também sem saber por que, acaba em Guantanamo.
Khalid é um personagem fictício. Mas garotos de verdade que viveram a tenebrosa experiência de ir para Guantanamo serviram de base para o trabalho de Anne.
Acontecia o seguinte. Os Estados Unidos estavam pagando dinheiro por delação no Paquistão. Algumas pessoas denunciavam inocentes – muitas vezes gente de fora, como Khalid – para levantar dinheiro. Como não havia rigor na apuração, era irrisório o risco de você ter que responder por uma denúncia que se provasse falsa.
“Por exemplo: o que você gosta em Londres?”, Anne me pergunta.
Gosto muito mais de ouvir do que de falar em conversas como a que estou tendo com Anne. Não julgo que minha vida seja tão interessante assim. E confesso que tenho extrema curiosidade pelos outros. Ser jornalista me autoriza a exercer essa curiosidade sem infringir as regras básicas de civilidade.
“De ficar no parque sem fazer nada”, respondo. “Quer dizer, lendo, jogando tênis ou simplesmente fazendo nada.”
A garçonete traz meu nhoque, e agradeço em italiano. “Grazie mille, signora!”
É engraçado como os cumprimentos a garçons em italiano são bem recebidos mesmo em restaurantes que não são italianos. Parecem mais sinceros, talvez.
“Queria saber falar italiano”, Anne comenta.
O drama de americanos e ingleses é que todos falam sua língua. O que significa que eles não precisam aprender outros idiomas.
“Vai virar filme?”, pergunto. O enredo do livro é cinematográfico.
“Vai. Conversei com uma pessoa que vê o futuro e ela disse que eu seria responsável por um filme.”
“Não acredito nessas coisas”, digo. “Só acredito naquilo que toco. Materialista ateu. Fui marxista na juventude. Deixei de ser, mas conservei o materialimo ateu.”
“Jura?”
“Sim. E é por isso que sou feliz. A certeza de que vou virar pó me dá tranquilidade para enfrentar a vida. O horror, para mim, seria viver uma segunda vida, e sofrer tudo de novo.”
“Você está falando sério?”
Claro que estou.
Ela diz que acredita em alguma coisa “maior”. Eu acredito apenas que você pode ter bons momentos deitando na grama de um parque londrino, e chamo isso de felicidade.