‘Ninguém foi enganado por Bolsonaro’: professor da UnB fala ao DCM sobre curso que trata retrocessos no Brasil

Atualizado em 24 de julho de 2020 às 16:42
Professor Luis Felipe Miguel (Imagem: reprodução redes sociais)

Em meio à pandemia do coronavírus, a Universidade de Brasília, UnB, inicia em 17 de agosto um curso de pós-graduação em Ciência Política e uma das disciplinas trata o tema:  “Retrocessos políticos no Brasil e no mundo: neoliberalismo, neoconservadorismo, neofascismo”.

O DCM conversou com o professor e coordenador do curso, Luis Felipe Miguel.

Eis os principais trechos da entrevista.

DCM – Quais os principais retrocessos que o senhor pretende apontar e trabalhar com os alunos, especialmente no Brasil, e quais as consequências?

Luis Felipe Miguel – São retrocessos múltiplos, que atingem em primeiro lugar a própria democracia.

O espaço de tomada democrática de decisões foi estreitado, na medida em que os interesses do capital têm que ser atendidos de qualquer maneira. O Estado passa a recolher impostos de todos para financiar grandes empresas em dificuldades ou recompensar especuladores.

Assim se impõem as políticas de austeridade, de desmonte do Estado social, de retirada de direitos – não importa se a maioria aprova ou não, elas são impostas. Esse é um fenômeno global, que a literatura chama de “desdemocratização”.

É o desfazimento da democracia liberal, que se construiu historicamente como o espaço em que os interesses dos dominados também tinham que ser levados em conta. Isso leva a um desencanto com a democracia eleitoral, que se mostra completamente incapaz de cumprir suas promessas de igualdade política e soberania popular, o que é aproveitado por movimentos de extrema-direita.

São movimentos que se aproveitam da situação de incerteza em que boa parte da população está mergulhada, pela crise econômica e pela redução de direitos, e apresentam um retorno a valores sociais e hierarquias fixas como solução: eles dariam “segurança” num mundo tão instável.

Família patriarcal, homofobia, supremacismo branco, tudo entra nessa conta. Há, portanto, uma confluência entre neoliberalismo, neoconservadorismo e neofascismo.

O bolsonarismo expressa essa confluência. Radicalizando o projeto do golpe de 2016 e também acrescentando a ele alguns elementos próprios, o bolsonarismo tem destruído os direitos da classe trabalhadora, destruído as políticas de bem-estar social, destruído as políticas de proteção ambiental, ampliado a sujeição política e econômica do país ao imperialismo estadunidense, ameaçado a laicidade do Estado, ameaçado a liberdade de expressão, promovido a violência política, promovido a apologia da ignorância, instrumentalizado o Estado em defesa de seus interesses particulares.

É uma ofensiva em múltiplos âmbitos, que tem sempre os mesmos adversários: a classe trabalhadora, as mulheres, a população negra, os povos indígenas, a comunidade LGBT, intelectuais, estudantes, artistas. E também os valores da democracia, da justiça, da república e da inteligência. O resultado é um país mais injusto, mais desigual, mais violento, mais corrupto, mais burro e menos soberano.

Bolsonaro, no exercício do poder, surpreende o senhor de alguma maneira, ou já era esperado?

Creio que ninguém foi enganado por Bolsonaro: ele sempre deu indícios inequívocos de quem era – atrasado, violento, incompetente.

Os movimentos que ele fez mais tardiamente em sua carreira, a fim de se viabilizar como candidato presidencial de uma extrema-direita unificada (a aproximação com os fundamentalistas religiosos e, depois, a adesão ao ultraliberalismo econômico), também foram bastante sólidos.

Desse ponto de vista, as políticas do governo Bolsonaro não espantam.

O que causa alguma surpresa é que, no governo, ele não fez nenhum gesto, nem mesmo simbólico, para reduzir tensões. Ao contrário, seu esforço é para manter sempre elevado o nível do conflito político. É a estratégia da nova extrema-direita, de se apoiar numa base minoritária, mas muito agressiva.

Em que medida o impeachment da ex-presidente Dilma, em 2016, refletiu nos “retrocessos” que o senhor pretende apontar em seus estudos?

É preciso dar às coisas o seu nome: o que ocorreu em 2016 foi um golpe.

A presidente Dilma Rousseff foi afastada do cargo sem o respaldo da lei. Foi um momento em que ficou claro que havia grupos que se arrogavam um poder de veto sobre as decisões políticas no Brasil.

A derrubada de Dilma foi instrumental para o início de um longo processo de revogação de conquistas igualitárias e democráticas, já a partir do governo Temer. A classe dominante decidiu que ia implantar suas políticas preferidas sem nenhum espaço de negociação com os trabalhadores e outros grupos dominados. Assim, na minha interpretação, o que vivemos hoje é o desdobramento de um processo que tem início no golpe de 2016.

O ex-presidente Lula informou nesta semana que está relendo a obra As veias abertas da América Latina, que mostra a exploração econômica e a dominação política do continente, primeiramente pelos europeus, e, após, pelos Estados Unidos. O senhor encara a conjuntura atual da mesma forma?

Não é possível entender a conjuntura brasileira sem levar em conta o imperialismo.

Sua presença nos acontecimentos políticos recentes (seja por meio de organizações governamentais, como o FBI, seja por meio de suas fundações privadas) está cada vez mais clara. Trata-se de uma questão de longo alcance, um nó que cabe à nossa imaginação política desatar: a história mostra que, nos países da periferia, se a classe dominante não é capaz de abraçar um projeto nacional, se está bem acomodada na posição de parceira subordinada do capital estrangeiro, então a democracia sempre é frágil.

É fato que o ministério da Educação está instrumentalizado para defender e tentar impor um pensamento de extrema-direita e conservador nas escolas e universidades.
Como a comunidade acadêmica, e do MEC, receberam a proposta deste curso?

Não houve nenhuma reação contrária que tenha chegado a meu conhecimento.

Eu creio que mudamos de fase – aquele período do Mendoncinha no MEC, de escolher um professor ou outro para ameaçar, já passou.

Agora há um ataque estrutural, que visa desmontar a universidade pública. É muito mais sério.

Protagonizado por setores dominantes e de forte teor conservador, o sistema político do país tem apoio do setor produtivo, interessado em implantar e garantir uma agenda econômica que atenda seus interesses. Aparentemente, esses interesses não são os mesmos da maioria da população. O que justifica o apoio massivo, durante as eleições, em candidaturas com esse perfil?

Os grupos empresariais têm uma grande capacidade de controle sobre o ambiente informacional.

Controlam tanto a grande mídia como os novos meios de disseminação de fake news.

Conseguem evitar que determinadas questões ganhem importância na agenda pública e impõem outras. Foram capazes de promover um movimento de “pânico moral”, em diversas camadas (corrupção, “comunismo”, sexualidade), cada uma delas mobilizando um setor da população.

Seria necessário um investimento importante na educação política popular, a fim de contrabalançar essa situação. Infelizmente, a ausência desse esforço de educação política conta entre as grandes falhas da experiência do PT no poder.

A Argentina, por vias democráticas, conseguiu conter a onda neoliberal após o fracasso do governo Macri. O senhor acredita que o mesmo possa ocorrer no Brasil já nas eleições locais neste ano, com as candidaturas progressistas, e em 2022?

Ainda há bastante tempo pela frente, mas no momento não é possível ser tão otimista. É uma campanha atípica, por causa da pandemia, em prejuízo das candidaturas mais dependentes do corpo a corpo, da militância.

A mídia se esforça por transformar o jogo numa disputa entre direita e extrema-direita, invisibilizando a esquerda.

E os próprios partidos de esquerda entram na eleição muito motivados por suas disputas internas. Eu creio que, mais importante até do que o resultado eleitoral, é que a campanha seja um momento de ampliação da mobilização de massas, da luta política contra os retrocessos.

Jose Cassio
JC é jornalista com formação política pela Escola de Governo de São Paulo