A PEC da insegurança jurídica e dos discursos de ocasião, ou a PEC Moro. Por Kakay e Marcelo Turbay Freiria

Atualizado em 19 de setembro de 2020 às 13:03
Sergio Moro

Você

tem que aprender

a respeitar a vida humana,

disse o Juiz.

Parecia justo.

Mas o Juiz

não sabia que, para muitos

a vida não é humana.

O prisioneiro retorquiu:

há muito me demiti de ser

pessoa.

E proferiu, por fim:

um dia,

a nossa vida será, enfim,

viva e nossa”

(Versos do prisioneiro – A sentença, Mia Couto)

Em 2016 ocupamos a tribuna do STF na ADC 43 para dar voz a milhares de pessoas em busca de cautelar para obstar a execução provisória da pena após segunda instância. Certamente uma das maiores violências à presunção de inocência e às liberdades sob a vigência do regime democrático.

Ali a Constituição tristemente sucumbiu, com o STF pressionado pela força opressiva da grande mídia e seguindo a inaceitável “voz das ruas”. Interpretar a Constituição com os olhos voltados para o apelo popular é desonrá-la. É usurpá-la. Mas o país se apaixonou pela liberdade, pelo estado democrático de direito e não sucumbiu. Voltamos à sagrada tribuna em 2019 para julgar o mérito da ADC, ao lado das defensorias públicas, da OAB, dos demais institutos de defesa para sustentar a presunção de inocência. Em julgamento histórico, triunfaram as liberdades. Cumpriu-se a Constituição. Na época, o ex juiz Sérgio Moro reconheceu que a nossa vitória foi a maior derrota do projeto encarcerador que ele patrocinava.

Em razão dessa decisão, milhares de pessoas deixaram o sistema carcerário. Estes cárceres imundos e desumanos, aqueles mesmos que o próprio Supremo Tribunal, no julgamento da ADPF 347, condenara como miseráveis e degradantes no histórico julgamento que reconheceu o “Estado de Coisas Inconstitucional” do sistema penitenciário, em razão de reiteradas e massivas violações de direitos humanos. Um tempo que não volta, vidas para sempre marcadas por um profundo retrocesso humano pautado no ataque casuístico e de ocasião a um dos mais importantes pilares de nossa jovem democracia.

Os desdobramentos da decisão nos permitiu assistir a derrocada do falacioso argumento de combate à corrupção através da execução em segundo grau, que alimentou e alimenta os discursos e votos mais inflamados, que insuflam a expressão de ódio e intolerância chamada a “voz das ruas”.

Abertas as grades, fileiras de miseráveis brutalizados pelo cárcere, massacrados e subjugados pela injustiça ganharam o que nunca lhes poderia ter sido tirado: a liberdade garantida e protegida pela presunção de inocência. Não, não eram os tais e poucos poderosos presos pela decisão do STF de 2016, mas multidões de pessoas simples, sem rosto, sem posses, destroçados por uma guerra de discursos e moralismos. Eram os assistidos da defensoria, que bravamente ocupou os debates públicos, que se agigantou frente ao Pleno do STF pra dizer que a vida, a dignidade, a liberdade de inocentes não são números estéreis em contas de padeiro.

Mas eis que, ainda em 2019, armas nem mesmo depostas, surpreendentemente sobrevém a PEC 199/19, que tenta colocar fim aos recursos extraordinários, transformando STJ e STF em meras instâncias revisionais. Na prática, antecipa-se o trânsito em julgado para a segunda instância, tentando possibilitar a prisão a partir desse momento processual. Mais uma vez a presunção de inocência começa a sentir o gosto amargo do descompromisso histórico, do discurso de maniqueísmo oportunista e salvacionista que busca o hiper encarceramento como a solução de todas as mazelas do país.

Ressurgem as mesmas falácias e meias verdades. Não, o Brasil não é o único país que assegura a presunção de inocência, tampouco o único que preserva a liberdade do acusado até o trânsito em julgado. Não, a alteração de entendimento promovida nas ADC 43, 44 e 54 não provocou a soltura dos “190 mil ladrões, estupradores e assassinos”, como covarde e falsamente foi alardeado pela grande mídia. Não, o resgate constitucional conquistado em 2019 não veio para beneficiar a turma da lava jato, como bem assentou a defensoria em inúmeros estudos sobre o substancial provimento de recursos e habeas corpus impactando a liberdade de assistidos no STJ e no STF, muito superior, aliás, aos percentuais de êxito da advocacia privada. Não, os recursos da defesa não são protelatórios, como artificiosamente afirmou o deputado propositor da PEC.

Não, a sociedade brasileira, parte dela, não pode mais uma vez ser seduzida por discursos de ocasião, por novo atentado às liberdades travestido de um falso combate à corrupção e à impunidade.

É necessária uma discussão séria e científica em favor do amadurecimento democrático, da estabilidade institucional e equilíbrio entre os Poderes, além da segurança jurídica. E nenhum país jamais conseguirá alcançar um marco civilizatório de respeito, de boa convivência e honestidade mediante violações de liberdades.

No fundo, a batalha retórica para ressuscitar a execução provisória em segunda instância traz doses diferentes do mesmo veneno, que sempre ataca, intoxica e desumaniza as mesmas pessoas, a “clientela” tradicional do sistema penal, o preto, o pobre, a mulher, o periférico invisível, sem vez e sem voz. O discurso falso-moralista de combate à corrupção a qualquer custo é só a embalagem publicitária de uma estratégia de dominação social já muito antiga e de um discurso de ocasião que, cedo ou tarde, se trai.

Foi assim com a prerrogativa de foro, foi assim com o instituto da prescrição, foi assim com o compartilhamento de dados investigativos. O discurso derreteu, as redes sociais orquestradas esqueceram. Os arautos da moralidade jurídica e do maxi encarceramento, os salvacionistas eleitoreiros de plantão, os verde-amarelistas de final de semana, lembram o poeta Zé Ramalho quando canta que “normalmente, comumente, fatalmente, felizmente, displicentemente” esses discursos se traem, mas o legado de violência vai ficando e se encrustando na sociedade, nas relações jurídicas, nos tribunais.

É preciso não descansar, nunca, mas resistir. É necessário um projeto firme de país, de nação pautado no comprometimento humanitário e no firme propósito de jamais cessar frente a toda e qualquer restrição indevida, ilegal e inconstitucional das liberdades. A PEC não pode ir adiante, não pode passar. Não passará.

Lembremo-nos de Clarice Lispector:

“Liberdade é pouco.

O que eu desejo

ainda não tem nome”

.x.x.x.

Antônio Carlos de Almeida Casto, o Kakay, e Marcelo Turbay Freiria são juristas. Kakay moveu a primeira ação direta de constitucionalidade, no caso da prisão em segunda instância, quando a Lava Jato ainda estava no início e Lula nem sequer tinha sido denunciado.

Este artigo foi publicado originalmente na Carta Capital e republicado aqui com autorização dos autores.