O jovem negro acusado de roubar a própria bicicleta e a manchete racista da Globo. Por Nathalí

Atualizado em 15 de junho de 2021 às 10:15

“Ninguém é inocente no Leblon.”

No bairro carioca em que o terrível Brasil de 2021 tenta parecer, de modo quase esquizofrênico, uma novela do Manoel Carlos, o racismo nosso de todo dia conta uma história real que parece nunca cansar de se repetir:

Matheus Ribeiro, morador negro do Complexo da Maré, pensou que seria uma boa ideia passear com sua bicicleta elétrica pelo bairro mais coxinha do Rio. Ledo engano. Quando se e negro e se vive no Brasil, muitas podem ser as consequências de um simples passeio: você pode ser morto pela polícia (chamam de bala perdida), estrangulado por um segurança no supermercado, acusado de roubo e linchado sem chance de defesa, ou, no mínimo, você vai ter que provar que é dono dos seus bens.

Dessa vez, aconteceu “apenas o mínimo”: Matheus foi acusado por um casal branco de roubar a própria bicicleta.

Um preto de bicicleta elétrica? No Brasil? Só pode ser roubada.

O casal tivera uma bicicleta igual à de Matheus roubada no mesmo dia, e isso foi suficiente para que abordassem o jovem na rua e o fizessem provar que não era o ladrão. Ele mostrou fotos antigas com a bicicleta e as chaves do cadeado, mas o playboy só descansou quando testou a própria chave e percebeu o “engano”.

“Desculpa”, eles disseram. Como se fosse suficiente.

Matheus poderia simplesmente dizer “vão se f*der” e ir embora? Provavelmente, não. Se a polícia fosse chamada, não haveria tempo para explicações.

Por alguma razão misteriosa – ou nem tanto – os racistas não tiveram seus nomes revelados pelos lírios do vale da nossa imprensa hegemônica. Como se não bastasse, a manchete da Globo foi “Jovem negro acusa casal de racismo após precisar provar ser o dono de sua bicicleta elétrica, no Leblon”.

Manchete do jornal O Globo sobre caso de racismo no Rio

Não, dona Globo: “Casal comete racismo ao acusar injustamente um jovem negro de roubar sua própria bicicleta”. Essa é a manchete. Será que é tão difícil assim?

Há menos de uma semana, uma jovem negra grávida foi assassinada pela polícia. Indignação geral, textão antirracista, reportagem no Fantástico, dona globo inconsolável.

Me poupem.

Será que não está suficientemente claro que manchetes como esta legitimam a morte de gente como Kathlen? Será difícil perceber que o papel da mídia na desconstrução do racismo estrutural é mais do que fundamental?

Para nossa sorte, são tempos em que não dependemos completamente da mídia hegemônica e das manchetes da dona Globo. O próprio Matheus gravou o rosto dos racistas nesse vídeo – sabendo, como sabemos todos, que esses rostos nunca seriam mostrados pela Globo ou por nenhum veículo da grande mídia.

Os racistas, como de praxe, se acovardaram. Mas o tom que Matheus usa pra falar com eles – um tom de resistência e poder – é música para os nossos ouvidos:  “Vá embora, playboy. Vá embora, filha da p*ta do caralho.”

Encurralar. Nunca retroceder. Se a polícia cumpre a ordem do Estado de matar (ou encarcerar) jovens pretos, se a mídia ainda noticia esses absurdos como se o racismo estrutural não existisse, se a classe média escravocrata passeia pelo Leblon, só nos resta a nós mesmos.

Porque, no Brasil, “não aceitam que o racismo é um problema”, como disse Chimamanda Adichie no Roda Viva ontem. Ou melhor: até aceitam, mas é um problema que eles criaram e não estão muito interessados em resolver.

“É um problema, mas não é um problema nosso”, diria a dona Globo.

Nathalí Macedo
Nathalí Macedo, escritora baiana com 15 anos de experiência e 3 livros publicados: As mulheres que possuo (2014), Ser adulta e outras banalidades (2017) e A tragédia política como entretenimento (2023). Doutora em crítica cultural. Escreve, pinta e borda.