O DCM já iniciou a primeira grande reportagem sobre o caso apelidado pelo Ministério Público Federal de “Helicoca” – o helicóptero do filho do senador Zezé Perrella apreendido no Espírito Santo com 450 kg de coca. É resultado de uma campanha de crowdfunding, pela qual os leitores financiaram o trabalho que começou a desvendar um dos maiores e mais ocultos crimes do país.
Joaquim de Carvalho – repórter do DCM – foi a Minas e ao Espírito Santo e voltou com diversos furos de reportagem. Um deles, que o processo pode ser extinto devido a um possível grampo ilegal praticado em São Paulo contra os acusados. Outro, que o copiloto do helicoca, Alexandre José de Oliveira Junior, enredou-se no tráfico devido às dívidas assumidas por sua empresa, uma escola de pilotagem de helicópteros no Campo de Marte, em São Paulo. “Ele não é traficante”, disse seu advogado.A empresa foi aberta em setembro de 2011 e no ano seguinte a Anac já havia declarado sua documentação irregular. Os bancos cobram juros altos, o investimento é pesado, o retorno é lento, a manutenção é cara e o dólar é sempre uma incógnita. Alguém precisa financiá-los. Não é nada fácil ser um empresário, sobretudo jovem e pobre como Júnior, como atesta o promotor público citado na reportagem.
Dentre tudo que o DCM revelou, dois detalhes sobressaem e se complementam. Não porque sejam novidade, ao contrário: encaixam-se perfeitamente no modus operandi das máfias mundiais. Especialmente da máfia calabresa – a ‘Ndrangheta [Andrángueta] – cuja recente estréia no hall da fama do tráfico no Brasil o Diário também noticiou.
A história do copiloto Júnior, ao invés de exceção, é a norma. A ‘Ndrangheta tem por hábito extorquir pequenos comerciantes e cobrar o “pizzo”, a velha propina para não serem incomodados. Quem se recusa a pagar pode ser vítima de agressões. Se eles tiverem algum interesse nos negócios da empresa para facilitar o tráfico ou a lavagem de dinheiro, não hesitam em impor ou assumir dívidas, e assim infiltrar-se e assumir o comando delas.
Os grampos telefônicos são rotineiros nas investigações e todo traficante sabe disso. As conversas sempre são dissimuladas ou codificadas. São a principal arma de juízes, promotores e delegados para se infiltrar nas quadrilhas e combater o “flagelo do crime”, como apontado por Joaquim. As escutas, porém, precisam de autorização judicial para terem valor como prova. Todo policial que se preza sabe disso. Sem isso, não passam de intimidação, como dar um tiro na perna dos inimigos. Aleija, mas não mata, como manda a tradição mafiosa da “gambizzazione”.
Em Zero Zero Zero, o jornalista italiano Roberto Saviano conta a epopeia de Bruno Fúduli. Como Júnior, um jovem e promissor empresário calabrês.
As semelhanças entre eles são fruto do crime organizado e globalizado. As diferenças decorrem da desorganização local da justiça brasileira.
Aos 19 anos, Bruno herdou a marmoraria do pai falecido. Tentou levar o negócio avante até começar a receber ameaças se não pagasse propina à ‘Ndrangheta. Ele se recusa e denuncia à polícia. A vingança seria só uma questão de tempo. Bruno vai se endividando cada vez mais, até o banco cortar seu crédito. O único jeito seria aceitar os juros exorbitantes cobrados pelos mesmos usurários que ele denunciara.
De repente, aparece uma proposta salvadora, vinda do chefãode uma família concorrente daquela que o ameaçava. Por um bilhão e setecentas mil liras de crédito ele só teria que viajar para Bogotá de vez em quando para encontrar o representante da quadrilha na Colômbia. O autor da oferta estava em prisão domiciliar e não podia viajar.
Ao voltar da primeira viagem Bruno descobre que sua dívida aumentou em seiscentos milhões a título de juros, que deverão ser pagos com outra viagem, e depois muitas outras. Agora ele não é mais um simples emissário, mas negocia a ampliação dos negócios com novos fornecedores.
O chefão, então, se oferece como sócio na marmoraria. Ele recusa. Depois das ameças do chefão da sua cidade e das dívidas assumidas com o concorrente dele, ele agora está nas mãos dos dois. Bruno é obrigado a admitir na sua empresa um mafioso da gangue da sua cidade que deveria cumprir prisão domiciliar.
Na Itália, como no Brasil, todo prisioneiro domiciliar tem o direito de trabalhar, a menos que se chame José Dirceu.
Agora a empresa de Bruno está nas mãos do chefão que o ameaçava, enquanto ele continua trabalhando para o outro que o espoliava. O trabalho e a exploração dobraram: as viagens são mais frequentes, ele tem que tratar e intermediar os negócios de um, além de fazer novos contatos, descobrir novas rotas, desenvolver a logística, encontrar novas formas de esconder a droga e conquistar a confiança dos seus fornecedores colombianos e sulamericanos.
Ele se torna cada vez mais eficiente, um verdadeiro homem de negócios. Não larga o telefone, sempre para falar das festas que organiza, dos bolos e do açúcar que encomenda para entreter seus convidados e disfarçar a natureza do pó branco que trafica. Bruno também sabia que poderia ser grampeado, com autorização legal, pela polícia antimafia italiana.
Durante quase duas décadas ele comprou, expediu e recebeu blocos de mármore colombiano de vinte toneladas – mais furados do que queijo suíço – recheados de cocaína. Despachava a mercadoria da Colômbia e corria para recebe-la na Calábria, onde dirigia pessoalmente a retirada dos tubos que continham a droga no interior do mármore.
Perto de completar quarenta anos, Bruno não aguentava mais tanta tensão. Tinha medo de morrer ou de passar o resto da vida na prisão. E pediu, pela segunda vez, socorro à polícia. Ou seja, ao Estado. Tornou-se um delator, um “pentito” [arrependido].
E começa tudo de novo: agora ele precisa conquistar a confiança das autoridades, passo a passo, durante muito tempo. Primeiro ele se torna uma “fonte confidencial”, por dois anos. Só depois que suas informações são confiáveis ele se torna um colaborador da Justiça – aqui com J maiúsculo. Um infiltrado, coisa rara na ‘Ndrangheta, cuja rede formada por células familiares é extremamente impermeável.
Decolagem – ao contrário do helicoca que aterrizou no colo da PF capixaba – é o nome da operação resultante da colaboração de Fúduli. É, até hoje, a principal operação sobre o tráfico internacional da ‘Ndrangheta e já de origem a duas outras: Decolagem bis e Decolagem ter. Envolveu as polícias da Itália, Holanda, Espanha, Alemanha, França, a DEA americana, a magistratura colombiana, a Venezuela e a Austrália. Levou a prisões na Lombardia, Piemonte, Liguria, Emilia Romagna, Toscana e Campania. E provocou a apreensão de cinco toneladas e meia de cocaína puríssima.
Como se vê, há uma só semelhança entre o copiloto brasileiro e o marmorista italiano. Ambos pretendiam fazer negócios bem diferentes do tráfico de drogas, mas viram no dinheiro aparentemente fácil do crime a solução para suas ambições.
O que os torna diferentes é a justiça – ou Justiça – de seus países.
Na Itália a Justiça aproveitou tudo que Bruno sabia para fazer Justiça.
No Brasil, tudo que Júnior sabe foi jogado no lixo pela justiça.
Se algum órgão policial em São Paulo estava no encalço da quadrilha com o intuito de fazer Justiça, bastaria solicitar autorização legal para isso, ao invés de colocar todo o trabalho em risco.
Se, no entanto, os policiais estivessem empenhados numa sabotagem política aos proprietários do helicoca, a resposta é a mesma que Bruno Fúduli ouviu na Colômbia:
“Aqui a inveja mata mais do que o câncer.”
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