O Buster Keaton do futebol: relembrando Garrincha, pelo inventor da crônica esportiva

Atualizado em 3 de julho de 2014 às 10:49

Em junho de 1958, no curso da Copa que daria o primeiro título mundialao Brasil, o jornalista Mario Filho dedicou uma crônica a um novo fenômeno: Garrincha. Mario Filho — que seu irmão Nelson Rodrigues considerava o inventor da crônica esportiva moderna — descreveu magnificamente não apenas o futebol mas a alma de Garrincha, como você pode verificar no texto abaixo.

Um era pouco para marcá-lo
Um era pouco para marcá-lo

E eis o “seu” Manuel ídolo da platéia mundial. Onde se fala em futebol fala-se em Garrincha. E o espantoso é que nós, que o conhecemos tanto, que somos, num certo sentido, íntimos dele, ou do futebol dele, não nos espantamos com essa admiração incontida do europeu. Esperávamos por ela e com aquela certeza do russo, de embasbacar o mundo, quando soltou o Sputnik.

Queríamos Garrincha no escrete por isso: para provocar um choque. O que nos surpreenderia é que Garrincha não fizesse o que fez contra os russos. Se ele fazia tudo aquilo ali, com a gente cansado de vê-lo, avalie contra o russo, que o ia ver pela primeira vez, o “seu” Manuel de pernas tortas, que não sabia direito como é que podia ficar em pé depois de um drible.

Contra o Fiorentina, o “seu” Manuel tinha feito coisa parecida. Pegara uma bola, invadira a área. E lá veio para cima dele um beque. Claro que Garrincha o driblou. Então o quíper saiu do gol. Garrincha passa por ele. Mas tem outro beque à espera de Garrincha dentro do gol. Que faz Garrincha? Dá um drible no tal beque, não de quebrar espinha, o que é mais especialidade de Didi, mas de jogá-lo fora do gol, o que ainda não se tinha visto. Porque o tal do beque tinha ido para o gol para ficar lá, para barrar Garrincha. E o drible de Garrincha jogou-o fora do gol. O tal do beque, quando quis voltar para o gol, evidentemente bateu com o nariz na trave.

Não é força de expressão. Há um instantâneo em que se vê o tal do beque parado de encontro à trave. Parado ficou, como num pesadelo em que a gente quer correr e não pode, para assistir ao gol de Garrincha. O “seu” Manuel podia ter entrado no gol como quisesse. Em idênticas circunstâncias, Isaías parou, pensou e fez o gol de letra. Outros têm fuzilado as redes vazias, com uma raiva que não se sacia. Depois do gol correm para a bola e metem-lhe o pé, com toda a força, como um assassino que não se contenta em matar de uma punhalada só e crava 37 mesmo.

O gol de Florença lançou uma nova luz sobre Garrincha. Porque a impressão que se tinha era de que Garrincha era o deboche em pessoa. Se fosse o deboche em pessoa, já teria levado umas boas bolachas por aí. Há jogadores que admitem tudo, menos o deboche. Por isso, de quando em quando, depois de um drible ou de um gol, a gente vê o pau comer. Em Garrincha se mete o pé, que se mete em todo mundo. Quando ele passa por um adversário, qual é o jeito senão tacar-lhe mesmo o pé, com fé, esperança e caridade? Mas também Garrincha não se ofende. Compreende o pontapé que recebeu e o perdoa.

Procurava-se explicar essa espécie de imunidade de Garrincha ao bofetão por uma simpatia que ele tem e que parece irradiar-se. Mas não era isso. Há jogadores que são de uma simpatia a toda prova e que talvez por isso sejam escolhidos para levar o primeiro tapa. Na hora da briga, o que se quer é ofender menos o jogador em quem se dá do que o que ele representa. E o jogador simpático parece representar mais o clube e a torcida. Pelo menos o clube e a torcida se ofendem mais se o seu mocinho apanhar. Compreenderiam mais facilmente que outro qualquer fosse esbofeteado.

Garrincha não apanha, bofetão, é claro, por quê? Eis uma pergunta que nunca fizemos. Ou só a fazemos agora porque temos a resposta. A resposta está naquele gol de Florença, Garrincha entrando com bola e tudo. Mas ao transpor a linha de gol, Garrincha parou, abaixou-se, pegou a bola e, de cabeça baixa, voltou. Só levantou os olhos para ver se havia algum italiano por perto que lhe exigisse a bola. Ele não se ofenderia absolutamente, pelo contrário, acharia que o italiano estava no seu pleno direito. Outro jogador qualquer estaria dando pulos. Se fosse uruguaio, daria uma volta olímpica pelo campo, esmurrando o ar.

Garrincha não fez nada disso. Quem o visse apenas voltando, de bola na mão, à procura de alguém que quisesse ficar com ela, não teria a menor ideia de que houvera um gol como só se vê uma vez na vida e outra na morte. Garrincha não era o vencedor arrogante, não era nenhum Átila do futebol, era apenas, e naquele momento mais do que nunca, o “seu” Manuel de Pau Grande, lá da Raiz da Serra, um lugarejo com casinhas espalhadas, uma igreja e uma pelada. E num “seu” Manuel ninguém bate. Garrincha quase que pedia desculpas por ter feito um gol assim.

Não que não fizesse outro igual nas mesmas circunstâncias. O drible é como uma emanação dele. Nasce nele espontâneo, irresistível. Ele está com a bola, aparece alguém para tomá-la, o “seu” Manuel então dá o drible nele. Não tem culpa que o outro vá no drible, caia sentado, sem saber como. O drible de Garrincha é mais forte do que ele. Mas ele não quer fazer pouco de ninguém. Tanto que não diferencia um rurso de um inglês, um italiano de um sueco, um brasileiro de um argentino. Para ele, quem está na frente dele é sempre um João. João é o outro, o que tem que ser driblado.

Três nele
Três nele

Driblado e não desmoralizado. Se lesse sueco, Garrincha havia de estar espantado. Os sóbrios escandinavos descrevem a realidade do jogo Brasil X Rússia dizendo que Garrincha montou um circo em Gotemburgo, que Garrincha desmoralizou a defesa russa. Longe de Garrincha, querer desmoralizar alguém. Aquele é o jogo dele, o drible dele, não há outro jeito. O João da Rússia, que aliás foram três, que se defendesse, que não o deixasse passar. Às vezes, embora seja raro, Garrincha perde um drible. Mas não perde a calma.

Talvez fosse melhor dizer a simplicidade. Porque Garrincha, no fundo, é um simples. Quem debocha não é ele, é o torcedor, é a platéia, que, mesmo sendo sueca, não resiste e, antes de bater palmas, se dobra em gargalhadas. O João caído não ri, que não é hora de rir. Olha para Garrincha. Se Garrincha fosse um Tinoco, um médio do Vasco de trinta anos atrás, que vivia rindo, que tinha um tique nervoso que lhe repuxava a boca e abria e fechava em risinhos, não escaparia de um bom tapa. Ou, pelo menos, teria de embolar com todo João que lhe aparecesse.

Mas Garrincha não ri. É um Buster Keaton do futebol. Os outros, os que estão vendo, é que têm a função de rir. E podem rir à vontade, que, inclusive, pagaram para isso, embora Garrincha seja sempre uma surpresa. Em Gotemburgo não esperavam por uma coisa dessas. Quem assistia ao jogo Brasil X Rússia se considerou um privilegiado: por ter visto a exibição do Brasil e de Garrincha. E considera-se, de certo modo, lesado por não ter visto Garrincha antes. Eis a pergunta sem resposta: por que Garrincha não jogou contra a Inglaterra?