“Eleição de Lula soa como um alívio planetário”, diz Le Monde

Atualizado em 31 de outubro de 2022 às 19:47
Lula
Em amplo destaque à vitoria de Lula, jornal de referência francês celebra resultado

A vitória de Lula estampa a capa do jornal Le Monde desta terça-feira. “Lula ganha num país fraturado”, diz a manchete do principal jornal da França, que chama o ex-presidente de “fênix do Brasil”. O editorial da edição considera o resultado “um alívio planetário”. A publicação destaca a reação positiva internacional: “De Macron à Biden, os chefes de Estado estrangeiros se alegram”.

Alívio

“Falou a democracia no Brasil. Domingo, 30 de outubro, ela demitiu o presidente atual, Jair Bolsonaro, depois de um mandato de tumulto e de fúria, ilustrado por uma gestão catastrófica da pandemia de Covid-19, a destruição da Amazônia, os ataques contra a democracia e um fluxo contínuo de declarações racistas, sexistas e homofóbicas”, enumera o editorial.

“Resta ao chefe de extrema direita apenas, mudo na noite da eleição, uma última obrigação que deve ao país: reconhecer publicamente sua derrota e preparar uma alternância pacífica na cúpula do Estado”, aponta.

“Quanto mais cedo seria melhor, uma vez que não seria necessário que aquele que foi frequentemente comparado ao ex-presidente Donald Trump o imite mais uma última vez se lançando numa contestação dos resultados que colocaria instituições à prova”.

“O tempo de uma campanha deletéria e virulenta passou. Agora, são os desafios que esperam o vencedor, Luiz Inácio Lula da Silva”, afirma.

“A estreita margem da vitória deste último, que faz 77 anos, depois de uma passagem pela prisão, constitui um dos mais espetaculares retornos ao poder nunca antes visto numa potência do tamanho do Brasil, mostra como a tarefa é imensa”, considera.

“Enquanto um triunfo lhe era previsto inicialmente, o ex-sindicalista teve de lutar com unhas e dentes para arrancar os votos que lhe permitiram ultrapassar Bolsonaro”.

“Lula havia, no entanto, acreditado que tinha muitas vantagens, a começar pela vontade de ir além da sua família política, a esquerda associada ao Partido dos Trabalhadores”, avalia.

“Diante do presidente atual, ele se apresentava à frente de uma ampla coalizão aberta a centristas e até conservadores, uma frente ampla que recebeu novos apoiadores entre os dois turnos”, lembra.

“Essa ampliação era, sem dúvida, indispensável, mas ela não impediu o enraizamento de um populismo agressivo e a passagem de um bolsonarismo militante a um bolsonarismo institucional, o que confirma o segundo turno das eleições”, analisa.

“Enquanto a campanha presidencial evidenciou a vulnerabilidade do país às inverdades veiculadas pelas redes sociais e a influência dos pastores evangélicos ultraconservadores, esse bolsonarismo já está presente em massa no Congresso Nacional, assim como em vários Estados desse gigante sul-americano, a começar pelo estado mais rico, que será governado por um ministro do presidente derrotado”, observa.

“No seu discurso, Lula prometeu restaurar a ‘paz’ e a ‘unidade’, dificultadas pelo mandato em curso. Ele se comprometeu também a lutar contra uma pobreza crescente e contra a fome que está de volta, a posicionar o respeito ao meio ambiente no coração de sua ação e a devolver ao Brasil todo o seu lugar no cenário internacional. Sua grande experiência política não será excessiva para superar os obstáculos”.

“Do seu lado, ele estará em sintonia com um continente sul-americano onde o progressismo de esquerda obteve vitórias históricas nos últimos meses, do Chile à Colômbia”, contextualiza.

“Lula poderá também contar com o apoio de diversos países, dos Estados Unidos à Europa, particularmente preocupados pelo destino da Amazônia, que Bolsonaro entregou à exploração sem limite”.

“A alguns dias da conferência do clima no Egito, sua eleição soa como um alívio planetário”.

Ameaças

A principal reportagem da edição do jornal parisiense também é dedicada à eleição brasileira, que diz: “o campeão da esquerda obtém 50,9% dos votos num dia cheio de tensões”.

“É uma longa espera, inquieta e silenciosa que termina em grito de alegria”, descreve.

“Uma curta vitória, suficiente para torná-la incontestável”, afirma. “Nas horas que precederam, os lulistas se recusavam a acreditar”.

“É o dia mais feliz da história recente do Brasil”, diz um cineasta de 30 anos à reportagem do Le Monde na Avenida Paulista.

“A esquerda está emocionada porque sua vitória foi por um triz, ao fim de um dia tenso que quase viu o conjunto do processo eleitoral sair dos trilhos”, diz a reportagem.

“Nenhum dos lados está sereno”, afirmam os repórteres. “Entre os lulistas, teme-se mais a violência do que uma fraude”.

“É sob alta proteção que os dois candidatos se apresentam, de manhã, cada um em seu colégio eleitoral.”

“No início da tarde, informações preocupantes emergem. Vídeos começam a circular na internet mostrando a Polícia Rodoviária Federal bloqueando a circulação no nordeste, bastião de Lula, e impedindo eleitores, que vieram de ônibus, de ir votar. Uma ação ilegal e formalmente proibida pela justiça eleitoral”, caracteriza.

“A operação não foi por acaso. A imprensa revela que ela foi organizada no dia 19 de outubro, numa reunião no comando do Estado. Encarregada de fiscalizar 7.500 quilômetros de rodovias federais, ela tem mais de 12 mil policiais, às ordens do Executivo de Brasília”, indica.

“Paparicada pelo poder de extrema direita, ela se distinguiu nestes últimos anos pela sua brutalidade. Alguns a apelidaram de ‘milícia de Bolsonaro’”.

“O poder estaria tentando usar as forças de segurança para garantir sua vitória?”, pergunta a reportagem do Le Monde. “A esquerda está convencida de que sim”.

“Por volta das 14 horas, a situação se degenera. Registram-se 500 operações de bloqueio, estabelecidas pela PRF. No Rio, a Polícia Militar, às ordens do governador, outro fiel a Bolsonaro, instala fiscalizações de veículos na Avenida Brasil, principal eixo da cidade, criando engarrafamentos gigantescos”, explica.

“Pior: sem nenhuma explicação, militares se posicionam na ponte ligando o Rio a Niterói. Uma simbologia carregada. Imediatamente as redes sociais enlouquecem. A hashtag #golpedeestado” vai aos trending topics”.

Bloqueios

A reportagem do Le Monde aponta o estado de espírito dos bolsonaristas após o anúncio dos resultados: “abatimento”.

“Alguns em Palhoça ou Sinop bloqueiam rodovias. Em Brasília, um grupo de quinhentos militantes fazem uma oração de joelhos sob a direção de um pastor evangélico”.

“Essa eleição foi injusta e suja. O povo não vai aceitá-la. Não acabou. Deus nos protege!”, diz Kaiza, dona de casa de 35 anos, ao jornal francês, que deduz: “esperando uma intervenção divina ou militar…”

“Todos esperam a palavra de seu líder, a chamada a uma cruzada, uma contestação na justiça ou nas ruas. Mas o ‘mito’ não se expressará”, reportam Angeline Montoya, Anne Vigna e Bruno Meyerfeld.

Fênix

Numa segunda reportagem do Le Monde, o repórter Bruno Meyerfeld lembra as contradições da história nos últimos anos que caracterizam o percurso de Lula, a partir de sua prisão, em 2018.

“A imprensa inteira descrevia um Lula acabado, morto politicamente, enterrado na vergonha”, escreve o correspondente – o termo “inteira” é impreciso, uma vez que a imprensa alternativa mantinha uma postura contrária.

Diante da chegada de Moro ao Ministério da Justiça, “Lula tem 73 anos. Ele acredita na sua estrela. Está na sua natureza: nascido na miséria do nordeste, o ex-sindicalista tem cinquenta anos de vida política. Ele sabe que a história política brasileira é sinuosa. Ele prevê que a extrema direita não resistirá na experiência do poder e que o Brasil, mais cedo ou mais tarde, voltará a ele”.

“A história lhe dará razão”, afirma. “Dia 8 de março de 2021, um juiz do STF determinou a anulação de suas condenações. Lula recupera sua inocência e seus direitos políticos”, relembra.

Diante do cenário de hostilidade no Congresso que lhe espera, a situação econômica “incerta” e um “país violento e polarizado”, o correspondente retoma a metáfora: “a ‘fênix do Brasil’ deverá usar todo seu talento para fazer seu país renascer das cinzas”.

Isolamento

A terceira reportagem principal da edição observa o isolamento do Brasil de Bolsonaro, em contraste com a sucessão de felicitações à vitória de Lula.

“As relações entre Jair Bolsonaro e Emmanuel Macron foram execráveis. Uma violenta querela lhes opôs em agosto de 2019 em meio aos incêndios da Amazônia”, recorda a correspondente Angeline Montoya.

“Ao longo do tempo, Jair Bolsonaro virou um pária no cenário internacional. Tirando o primeiro-ministro húngaro Viktor Orban, que lhe havia dado seu apoio antes do primeiro turno, os trumpistas e algumas monarquias petrolíferas do Oriente Médio, o líder de extrema direita não tinha mais nenhum aliado”.

“Lula sustentou sua intenção de reorientar a diplomacia brasileira afirmando, por um lado, a centralidade da urgência climática e selando, por outro lado, uma parceria estratégica com a União Europeia por meio de um acordo de livre-comércio renovado entre a União Europeia e o Mercosul”, opõe.

Willy Delvalle
Mestre em Sociologia e Filosofia Política pela Universidade Paris 7. Formou-se em Comunicação Social: Jornalismo na Unesp. Em São Paulo, foi professor voluntário de português a imigrantes e refugiados. Atualmente, cursa mestrado em União Europeia e Globalização na Universidade Paris 8