Ela tem 63 anos, uma carreira consolidada como artista e uma história pessoal que se confunde com suas criações. Laerte Coutinho é uma das maiores cartunistas do Brasil.
Laerte publicou recentemente uma charge na Folha de S.Paulo na qual defendia abertamente a regulação dos meios de comunicação.
Conversamos com ela — é como Laerte prefere ser tratada — sobre a chacina recente dos jornalistas do Charlie Hebdo em Paris e sobre a convivência entre mídia regulada e humor.
Você acha que levaremos muito tempo até digerir essa chacina que ocorreu em Paris?
Chacinas não são nada digeríveis, infelizmente. O que estou vendo são debates que já vinham acontecendo sobre questões ligadas ao humor, à liberdade de expressão. E que se incendiaram na presença desta tragédia.
O Charlie Hebdo está levando a culpa pela tragédia? Faz sentido?
Cartunistas fazem parte do universo de jornalistas de opinião, especialmente aqueles que se dedicam à charge e à sátira política. Não acho que vá acontecer uma pressão inédita sobre os autores e autoras de sátiras. Nem acho que uma possível pressão desse tipo conseguiria obter mudanças sensíveis no grau de liberdade com que esse trabalho é feito hoje.
Sua pergunta usa o termo “culpa”. É uma palavra de alta complexidade neste momento. Charlie Hebdo é uma das revistas mais importantes do mundo em sua área e influenciou milhares de pessoas em sua história. Inclusive eu. Acho que a linguagem do humor, necessariamente agressiva, de nenhum modo é neutra, porque sempre há um conteúdo ideológico pelo qual o discurso humorístico deve responder.
“Foi só uma piada” é uma defesa geralmente idiota. No entanto, por suas características especiais, sua subjetividade, é difícil avaliar de longe como se realiza este discurso, que tipo de leitura se faz no contexto da realidade francesa. Para nossos olhos, pode se tratar de islamofobia pura.
A experiência que temos no Brasil em relação a populações islâmicas é bem diferente porque há muitos imigrantes de origem árabe, boa parte cristã. Tenho a impressão, e posso estar muito errada, de que a islamofobia no Brasil procura obter resultados em relação a apoios e condenações de políticas no exterior, especialmente no caso da Palestina.
Você acha que existe preconceito por trás da crítica especificamente voltada para as religiões muçulmanas?
O tráfego dos preconceitos é intenso e multidirecionado. Racismo, machismo, fobias de todos os sabores e qualidades se combinam em desenhos elaborados e complexos. Sim, o islamismo é hostilizado, assim como o judaísmo e o cristianismo. Esses ataques ocorrem em várias medidas. As religiosidades são hostilizadas e manipuladas de muitas formas.
Quando os assassinatos ocorreram, boa parte da imprensa brasileira de direita criticou quem não se apressou a condená-los como terrorismo. Qual sua opinião sobre isso?
Eu acho o termo “terrorismo” muito pouco nítido e excessivamente carregado de conteúdo reacionário. A discussão sobre o que aconteceu dá sequência às acusações que já vinham sendo feitas por essa direita. Eles dizem que há patrulhamento, exigências de “correção política” e interpretações tendenciosas. Não tenho respeito por essas ideias.
Você acredita, como cartunista, que deva existir um “humor politicamente correto”?
Acho que essa é uma discussão-armadilha, a do politicamente correto versus o incorreto. Ela impede que se enxergue uma situação social em mudança, em que comunidades de mulheres, negros, judeus, deficientes físicos e LGBTs conseguem força suficiente para não ter mais que suportar as humilhações e ridicularizações de que eram alvo.
Recentemente Renato Aragão disse que “negros e veados” não se importavam com as piadas que se faziam sobre eles antigamente. A realidade é que não tinham como reagir. O humor, como todas as áreas da cultura, não tem por que se recusar a levar isso em conta. O que ele pode fazer é produzir de forma diferente, também.
O que você achou da campanha #JeSuisCharlie?
Acho que o hashtag tem, neste momento, uma função importante de catalizar a solidariedade geral e recusar a ação da violência irracional do ataque executado em Paris.
Laerte, em uma charge publicada na Folha, você defendeu abertamente a regulação dos meios de comunicação. Por quê?
Acho que há uma ação unificada da mídia com um propósito político claro ao recusar a discussão sobre regulação de meios de comunicação. É o que penso. Acho que nossos meios precisam se submeter a interesses da sociedade. Até em nome da liberdade de expressão dela. É um debate que precisa começar agora. Não tenho uma resposta clara e abrangente, infelizmente. É preciso buscar modos democráticos de limitar o monopólio dos meios de informação, bem como garantir e estimular o uso desses meios por parte da população. Isso deveria ser feito para diversificar as abordagens e opiniões que existem hoje e ficam concentradas nas mãos de poucos detentores da audiência.
Você acredita que uma mídia regulada conviveria bem com o deboche?
Acho que conviveria muito melhor com o humor de deboche ou de debate. Não vejo o humor sendo censurado com mais veículos de mídia criados. Ele apenas seria, talvez, mais debatido.