
O surgimento de novos capítulos na investigação do assassinato da vereadora Marielle e de seu motorista Anderson remete a atenção para a questão das milícias do Rio de Janeiro e como elas foram tratadas e noticiadas ao longo deste início de século. Neste período, o jornal O Globo seguiu uma linha editorial de apoio, facilmente verificável na pesquisa da historiadora Michelle Airam. Na edição de domingo, 10 de dezembro de 2006, a manchete destacava que “Policiais apoiam milícias na guerra por espaço do tráfico – A cada doze dias grupos de extermínio ocupam uma nova favela no Rio”. No mesmo jornal, em continuação à matéria, o título é ainda mais objetivo: “A polícia paralela – Milícias expulsam traficantes de drogas e já controlam 92 favelas.”
Outro trecho traz referência à diferença entre a atuação da polícia e da milícia: “para explicar a eficácia das milícias na expulsão do tráfico de drogas das comunidades carentes o coordenador do gabinete militar cita em seu relatório um exemplo bastante simples: ‘um menor flagrado com maconha pelo PM fardado é preso em flagrante, conduzido à DP, assume o compromisso de comparecer posteriormente em juízo, ganha liberdade imediata e retorna à favela, onde reincidirá no crime. Já o menor flagrado com maconha por integrantes da ‘mineira’ recebe imediatamente um corretivo físico e psíquico. É encaminhado à presença dos pais e ameaçado de morte, caso volte a reincidir. O Estado tem que agir dentro da legalidade, enquanto a milícia, não’. O coordenador segue em relatório concluindo que o Estado deve adotar lei de procedimentos mais céleres e eficazes para que a informalidade e a ilegalidade não sejam vistas como ‘único caminho a seguir’ pela sociedade”.

É do comandante do Bope, ainda em edições de 2006, a afirmação de que “a tomada dos territórios só foi possível pelo apoio da comunidade ou parte dela (pois a atuação das milícias era melhor, na visão de alguns moradores, já que eliminavam os conflitos entre facções ou entre traficantes e policiais)”. Já a inspetora Marina Maggessi, eleita deputada federal à época, fez elogios e defesas ao trabalho das milicias. Para a policial, tratava-se de uma reação dos policiais que moram em favelas e não possuem segurança. E ainda complementa: “é preciso analisar pela ótica do morador da favela. Ele também quer TV por assinatura, mas não pode e nem quer pagar o preço. Então ele quer gatonet”.
Com bem lembra e destaca a historiadora, o jornal ainda “errou” ao analisar um mapa formulado pela corregedoria. Segundo Airam, “apesar da chamada da capa tratar das ‘áreas dominadas pelas milícias serem ocupadas anteriormente por traficantes’, à informação não procedia. Afinal, a favela de Rio das Pedras, e muitas outras, não contavam com a presença de traficantes. O mapa apresenta outra informação, mas a narrativa jornalística buscava dar destaque as ‘ações’ positivas e legitimadoras desses grupos, assim representava grande parte de seus leitores e anunciantes”.

Um outro fato importante, dá conta do hiato entre a proposta de CPI das milícias (Marcelo Freixo, 2007) e a aprovação dela. O Poder Legislativo do RJ “não acreditava, em sua maioria, que as milícias fossem um problema que necessitasse de uma investigação”, apesar de todos os fatos que eram noticiados – evidentemente que de forma “construída”, através de narrativas “positivas” desta que era vista como “polícia paralela”. Porém, quase um ano depois, um fato mudaria drasticamente a postura da mídia, neste caso do Globo, em relação às milicias. Segundo a historiadora, um fotógrafo e um jornalista do jornal O Dia estavam fazendo matéria em favela controlada por milicianos (Batan). A investigação era sobre os grupos que detinham o poder. Encontrados por dez homens encapuzados, foram forçados a buscar a outra integrante e mantidos por sete horas com torturas e ameaças de morte. Depois de soltos, a “percepção do cativeiro, de acordo com roupas e dados, garantia se tratar de membros da polícia militar”. O caso conhecido por “jornalistas torturados” ganhou peso máximo para a instauração da CPI e mudança brusca na construção de narrativas do jornal outrora citado.
O principal método para essa mudança se deu pela troca de cadernos para as publicações. Segundo Michelle Airam, antes da CPI os “feitos” das milícias estavam em cadernos de circulação local, porém, após o fato e a instauração da Comissão, passaram a ser publicados no caderno O País – de maior destaque e repercussão – tornando também maior os efeitos e danos de suas operações.