A amargura e a esperança no novo livro de Milton Hatoum, o mais importante escritor brasileiro vivo. Por Marcius Cortez

Atualizado em 16 de janeiro de 2018 às 16:02
Milton Hatoum lê “A Noite da Espera”

POR MARCIUS CORTEZ, escritor, autor de “Stanley Kubrick: o monstro de coração mole”

Após 9 anos de espera, o amazonense Milton Hatoum está de novo no centro do palco produzindo a ficção que o consagrou como o mais importante escritor brasileiro vivo, depois do olímpico Raduan Nassar.

O título da obra é “A noite da espera” e se anuncia como o primeiro da trilogia denominada “O lugar mais sombrio”.

O livro abre com a fotografia de um ônibus Mercedes-Benz modelo 1964, Brasília-São Paulo. Três são os seus passageiros: a nova geração, os pais sofredores e esse angu de caroço chamado Brasil historicamente asfixiado por sua senil condição de república bananeira.

Os jovens Martim, Dinah, Fabius, Ângela, Vana, Lázaro, o Nortista, Damiano ziguezagueiam pelas trilhas de sua formação, acumulando conflitos com pai e mãe ao mesmo tempo que se entregam ao clamor do sexo, às descobertas da paixão, ao teatro, à cerveja, à poesia, à maconha, à militância política e à obsessiva teimosia de editar uma revista de cultura (A Tribo) em pleno auge da ditadura militar.

O ônibus circula por cenas horríveis, típicas da Brasília dos anos 1968 a 1972: fogueiras de livros, invasão de campus universitário, censores nas redações dos jornais, cérebros algemados, braços atados e no ar, o cheiro podre da tirania, o mofo da mediocridade e o travo amargo de gente perdida.

Em “A noite da espera”, propositadamente, a prosa não tem o tom evocativo encontrado em seus outros romances. A ela foi acrescida uma fragmentação, cortes elaborados e sínteses que por vezes funcionam como conclusão. Lembro de uma delas no capítulo intitulado Rue d’Aligre, Paris, março, 1978, p.17: “Comecei a datilografar os manuscritos: anotações intermitentes, escritas aos solavancos: palavras ébrias num tempo salteado”.

Milton Hatoum, o hábil arquiteto das histórias bem construídas, continua afiado. A ação do livro tem dois momentos: o momento em que ela acontece no Brasil e o momento em que é passada a limpo quando Martim, a personagem central, muda-se para Paris e reflete sobre seu passado.

A noite não é um lampejo nem uma eternidade. No Brasil, contudo, noite significa longa espera. Por isso Hatoum ao lidar com datas rejeita sua lógica e passa a levar em conta sobretudo seu aspecto simbólico. Faz o maior sentido entender o golpe de 1964 e o golpe de 2016 como a mesma coisa. Há várias passagens do livro em que isso fica muito claro.

O embaixador Faisão, pai de um dos amigos de Martim, antes considerado um dos cérebros do Itamaraty, amarga o ostracismo e a todo instante solta seu veneno cunhando uma frase mais do que emblemática: “A cabeça do padeiro é a cabeça do Brasil. Ninguém pode proibir o diplomata de atravessar o oceano”.

Ou em outro instante, mais direto, mais panfletário quando Hatoum põe no ar a pergunta de um velho gaúcho: “Uma rede de criminosos que rasgou a Constituição pode ser chamada de governo honesto e rígido?”

De certa maneira, “A noite da espera” é uma crônica sobre a desilusão, o país arruinado e os nossos pesadelos reincidentes. Porém engana-se quem afirmar que se trata de um livro rancoroso e que o ódio povoa suas 236 páginas. Martim foge de Brasília, muda-se para São Paulo e hoje vive na Europa.

Talvez saudoso da mansidão dos igarapés, talvez sorumbático lembrando da escuridão do Paranoá, talvez sereno fitando a água do Velho Continente que lambendo pontes de nomes sonoros torna-se Paris, talvez em lágrimas, na frente do espelho, para fortalecer a amargura e a esperança.