
Por Lenio Streck, Pedro Serrano e Mauro Menezes
Uma falsa polêmica está no ar. Condenados os golpistas, começam a leituras jurídicas deformadas. Agora sobre anistia, assim já foi com o artigo 142 da Constituição Federal (CF), quando alguns defendiam que as Forças Armadas seriam uma espécie de poder moderador. Acreditaram naquilo que o Supremo Tribunal Federal (STF) denunciou como “terraplanismo jurídico”. Deu no que deu. A fraude interpretativa fomentou o golpismo, culminando com o 8 de Janeiro.
Agora, a lenda em construção é: a anistia seria constitucional porque não haveria vedação expressa na Constituição. Já adiantaremos nossa tese: a CF proíbe, sim, a anistia. E o STF, lendo corretamente o texto constitucional, já disse ser inconstitucional.
Alguns integrantes do meio jurídico (e jornalistas) começam a sustentar a estranha versão de que a Constituição não proibiria explicitamente a anistia para quem tentou golpear a democracia. Vamos, então, ler os dois incisos do art. 5º da CF que tratam disso: “XLIII — a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico de entorpecentes, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos”; e “XLIV — constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.
O que seriam, afinal, crimes “contra a ordem constitucional”? Sem dúvida, a ação de grupos armados, civis ou militares, está, sim, inserida na proibição de anistia. Então, os golpistas foram condenados por quê mesmo? Por tentar abolir com violência o Estado de Direito. Causa finita.
Também o STF já deixou claro que a anistia para quem agride a democracia é inconstitucional. Foi no caso Daniel Silveira. Além da vedação explícita, o Supremo Tribunal Federal fala, dezenas de vezes, em vedação implícita.
Qual é o problema, então? Simples. A interpretação buscada pelos defensores da constitucionalidade da anistia está assentada em uma leitura da Constituição Federal em fatias. Querem retirar do inciso XLIII uma tese negativa, do tipo “o que não está proibido, está permitido”. Mas, além de o inciso XLIV aniquilar a pretensão, há outros argumentos, como o de que a tese do “não está proibido…” esbarra na própria lógica e na interpretação sistemática. E teleológica. Veja-se: a CF também não proíbe golpe de Estado, não proíbe consumir cocaína, não proíbe que o presidente decrete Estado de Sítio ao seu bel-prazer. Por não proibir, permite? Lógico que não!

São coisas elementares na hermenêutica. Mesmo numa perspectiva textualista-positivista — que Luigi Ferrajoli, ao rejeitá-la, chama de paleojuspositivista —, a norma isolada nada quer dizer. Se há um truísmo no direito, é o de que não se interpreta em fatias, parcialmente. Já o literalismo é autocontraditório, como na suposição de que a proibição de cães no parque implique ao juiz proibir o cão-guia do deficiente visual. E permitir jacarés.
Isto é, seria um monumento à insensatez dizer que, se a Constituição Federal proíbe anistia a grupos armados civis e militares, poder-se-á (incrivelmente) permitir anistia a quem tenta destruir a democracia.
O inusitado é que até mesmo Hans Kelsen tem sido usado para defender a tese textualista. Ora, a aplicação do direito em Kelsen é uma questão de política jurídica. Ele não separou direito da política nem da ideologia. Separou, sim, a ciência da moral. Com Kelsen, chegamos facilmente ao resultado já alcançado pelo STF. Como diz Kelsen, juiz produz norma. E, com Kelsen, também facilmente podemos dizer que o citado inciso XLIV do art. 5º é uma explicitação da proibição de anistia, embora nem necessitasse, uma vez que nenhuma democracia pratica haraquiri, ao perdoar quem lhe tentou destruir.
Três últimas questões: (i) se o art. 60, § 4º., da CF contém cláusula pétrea que proíbe até mesmo emenda tendente a abolir o Estado Democrático, o que dizer sobre um golpe de Estado?; (ii) anistia diz respeito ao passado, com o intuito de pacificação, aqui os que querem anistia são exatamente os que continuam a ameaçar a democracia — logo, isso é presente e futuro e não passado (essa anistia seria dar uma forma restart no golpe!); (iii) a anistia, nos moldes discutidos, traz-nos um nítido desvio de finalidade legislativa, com o claro intuito não de pacificar, mas, sim, de provocar uma crise institucional.
Por derradeiro, a tese de que a anistia tem o condão de pacificar é desmentida pela história. O Brasil, toda vez em que anistiou golpistas e agentes do Estado transgressores, criou mais problemas do que resolveu. A autoanistia dos militares torturadores em 1979, por exemplo, nada tem a ver com a anistia a ser feita em plena democracia, mormente depois da 14ª tentativa de golpe de Estado em nosso país desde 1889, incluídos os tragicamente bem-sucedidos.
Será que aprendemos algo com a história?