A batalha invisível de Kécia, que leva saúde a 128 famílias pobres brasileiras

Atualizado em 19 de novembro de 2014 às 14:55
Kécia
Alagoa Nova, Paraíba

Kécia Vieira é de Alagoa Nova, Paraíba. Tem 24 anos e trabalha como agente comunitária de saúde, ACS, na periferia do bairro Ulisses Guimarães, conhecido como Mutirão. Um local atrasado, onde a renda média gira em torno de 400 reais por família (beneficiadas pelo Bolsa Família) e somente alguns têm direito ao salário mínimo através de aposentadoria e outros pouquíssimos com carteira assinada. Um lugar onde anticoncepcional é tabu (as mulheres precisam recorrer às unidades básicas de saúde e tomam-no escondido dos maridos), onde a sífilis é corriqueira, onde o crack começa a dar sinais de fumaça incrementando os números da violência.

E era exatamente isso o que Kécia procurava. Quando decidiu prestar o concurso para ACS, buscava a oportunidade de lidar diretamente com pessoas, em especial numa comunidade como o Mutirão. Seria uma oportunidade de ajudar, observar, de assimilar sua cultura, seu modo de ser, viver e enxergar a vida social. “Sempre ouvi falar muito do Mutirão: lugar de gente ruim, só tem pobre, só tem violência, prostituição. E isso me inquietava, queria conhecer mais de perto aquelas pessoas. Meu trabalho hoje é o de levar informação, de orientar, de tentar mostrar novas formas de ser, ver e viver em sociedade. Mas muitas vezes me deparo com realidades que me desestruturam, me chocam.”

Como um de seus objetivos era “enxergar” aquelas pessoas, Kécia passou a registrar os moradores da comunidade carente onde atua, por meio de fotografias (a foto de abertura deste artigo é uma delas). “Tive vontade de fotografar aquela realidade como um meio de mostrar o que muitos não querem ver. Percebi que aquela comunidade era um lugar esquecido, deixado de lado e só citado por seu ‘lado ruim’. Quis mostrar que ali moram pessoas que têm talentos, que são inteligentes, crianças com grande potencial, mas que vivem num contexto social que exclui, marginaliza. Queria mostrar que não têm culpa de estarem imersos naquela realidade, que a culpa está em todos nós, que baixamos a cabeça para essas relações desiguais, e para as injustiças sociais.”

O cenário de fato não é alegre. “Como a comunidade está inserida nesse contexto de muitas vulnerabilidades sociais, as drogras têm entrado força. Antes era mais o álcool, atualmente o número de viciados em crack, cocaína e cola está muito grande, principalmente jovens e adolescentes. Convivo com esses dependentes diariamente e, infelizmente, vejo a destruição de suas famílias. O fato é que as consequências do tráfico já aparecem: violência doméstica, roubos, assassinatos, jovens que não querem trabalhar, aumento do índice de DST’s, etc.”

Kécia atende sozinha a 128 famílias todos os meses. Diz que seu trabalho está mais para o de psicóloga. “Na comunidade, o grande desafio consiste em lidar diretamente com a violência, a marginalidade, e ao mesmo tempo, ter um olhar de esperança e de que essa realidade pode e deve ser transformada a partir da educação, da orientação, da troca de saberes que há na relação que estabelecemos cotidianamente”, diz a moça franzina, de tenacidade musculosa. E altruísmo maior ainda.

Com um salário de R$ 1.014 e sem adicional por insalubridade, Kécia não deixa de colaborar com o que for preciso. “Por vezes temos que tirar do bolso para investir em ações que queremos muito fazer. Há um curso de gestantes em nossa unidade, damos brindes para as gestantes que comparecem, isso nós pagamos. Temos também um dia de incentivo à realização do exame citopatológico então disponibilizamos lanche e alguma lembrancinha, e tudo isso é a equipe que banca. Como a comunidade fica longe, eu trabalho de moto, mas não tenho nenhum auxílio para a gasolina, nem de manutenção por parte da administração.”

Os ACSs são a linha de frente de uma batalha invisível. O trabalho denominado Atenção Básica é extremamente importante para o SUS por desafogar o atendimento secundário. “Atuamos com a promoção e prevenção e assim desenvolvemos o trabalho não meramente curativo mas de orientação e cuidado no intuito de que as pessoas possam evitar doenças futuras por meio de hábitos saudáveis. Todavia, acho nosso trabalho ainda desvalorizado. Deveríamos ter mais incentivo, condições de trabalho mais dignas, redução de carga horária já que trabalhamos sob o sol diariamente. O PROVAB (Programa de Valorização do Profissional de Atenção Básica) deveria também contemplar outras categorias, não apenas a médica, para incentivar a pesquisa, o aprimoramento intelectual, e a extensão de atividades dentro do campo de trabalho”, desabafa.

Diga, leitor, você permaneceria quanto tempo se arriscando apenas por amor ao ser humano? É ou não é digno de nota o envolvimento apaixonado pela causa como demostra Kécia? Com suas iniciativas muitas vezes simples, com seu trabalho de formiguinha, ela proporciona melhorias em uma das regiões mais desassistidas do país. É um gesto individual que constrói a saúde pública.

“A gente não pode mudar tudo, mas pode tentar. E o que tento levar é conscientização a essas pessoas”, diz Kécia.

 

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