A blogueira que denunciou o tio pedófilo no YouTube expôs a hipocrisia da “família tradicional”

Atualizado em 14 de julho de 2020 às 17:56

Este é provavelmente o vídeo mais perturbador que você verá hoje. 

A adolescente de peruca que fala para a câmera sozinha em seu quarto é Serena, uma jovem que mantém um canal sobre animes no YouTube, e resolveu usá-lo dessa vez para uma finalidade muito mais desafiadora: denunciar os abusos que sofreu do próprio tio durante a infância.

É estatístico: a maioria dos estupros acontece dentro de casa, por familiares ou amigos da família. Setenta por cento deles, para sermos mais exatos (segundo a Secretaria de Segurança do Distrito Federal).

Isso implica dizer não apenas que o estuprador mora ao lado – e pode ser, literalmente, qualquer um – mas também que os casos de abuso são, muitas vezes, abafados pelas famílias – assim como pelas igrejas evangélicas e eventualmente pelas autoridades policiais. 

Não foi diferente na família de Serena: no vídeo, ela narra que tentou contar o que acontecia a sua avó e tutora na época, mas foi silenciada. “Ela me disse que eu ia destruir a família, que meu primo entraria no mundo das drogas, que meu avô teria um infarto”. 

Os abusos eram recorrentes e aconteciam na calada da noite, longe dos olhos dos pais de Serena, mas escancarados para os avós, com quem a menina vivia à época, e que nada faziam a respeito do genro pedófilo. 

Os episódios de abuso e silenciamento renderam traumas que ecoam na vida da youtuber até hoje: tentativas de suicídio, dificuldades de socialização, crises de ansiedade e transtornos psíquicos. 

“Você não tirou só a minha virgindade, você tirou a minha força, a confiança que eu poderia ter em qualquer homem”, desabafa para a câmera, dirigindo-se ao tio pedófilo. 

O vídeo de Serena não é chocante apenas pela fragilidade aparente da garota, pelos danos psíquicos e comportamentais que lhe foram causados a olhos vistos, mas sobretudo pela própria narrativa, tão absurda e ao mesmo tempo, sabemos – e sabem as estatísticas – tão comum, e por isso mesmo tão perturbadora. 

Encaremos os fatos: não se pode debater sobre estupro sem questionar a família tradicional, essa instituição que – de fato e estatisticamente – está tão ligada ao abuso sexual. 

Quantas crianças e adolescentes seguem sendo abusadas dentro de suas casas, silenciadas por suas famílias e sem forças pra denunciar seus abusadores? 

Felizmente a internet – mesmo dando palco pra tanta coisa e pra tanta gente sem noção – tem sido uma aliada importante no processo de resistência feminina.

Fora do ambiente virtual, como uma menina abusada e traumatizada como Serena, com problemas de auto-estima e socialização, que nunca foi capaz narrar seus abusos nem mesmo diante de um psiquiatra, conseguiria denunciar o próprio estuprador?

Outras mulheres – famosas e não famosas – têm usado as redes sociais como ferramenta para denunciarem estupros ou outras violências.

O caso de Eva Luana, que denunciou os abusos que sofrera por parte do padrasto durante anos, é o mais recente entre as mulheres anônimas.

As blogueiras Mayra Cardy, Dora Figueiredo e Suzanne Riediger também usaram as redes para relatarem episódios de abuso, o que tem se tornado – felizmente – uma prática comum na internet. 

Se antes a hipocrisia da família tradicional e da sociedade bela e moral permitiam que abusos permanecessem debaixo do tapete, agora as mulheres botam a cara no sol – ou, em adaptação livre, no YouTube.