A colegialidade, o direito e moral em guerra e a sinuca de bico do STF. Por Lenio Streck

Atualizado em 19 de abril de 2018 às 15:48

Texto publicado no Conjur.

Por Lenio Luiz Streck

Passou despercebido — até para mim, confesso — um detalhe no julgamento do Habeas Corpus de Lula. Como sabemos, o voto protagonista do indeferimento do HC, da lavra da ministra Rosa Weber, baseou-se em uma “tese” chamada “colegialidade”. Interessante é que os defensores do “princípio da colegialidade”[1] agora estão dizendo que a ministra o usou erradamente. Mas a tese é boa (sic), sustentam. Pois é. Deixo que os colegialistas briguem entre si e depois avisem aos réus presos o resultado da refrega.

Sigo. Para lembrar que, fundada na colegialidade, a ministra Rosa Weber conseguiu sustentar que, embora tenha votado — para mim, corretamente — pela constitucionalidade espelhada do artigo 283 do CPP (tese esgrimida pela ADC 44, da qual fui dos subscritores), agora, por ocasião do julgamento do HC de Lula, disse ela que tinha de manter a estabilidade, a coerência e a integridade do Direito. Por essa razão votou contra si mesma, mantendo aquilo que a maioria decidira em 5 de outubro de 2016 (liminares negadas nas ADCs).

Ora, se a colegialidade vale mesmo, então por que ela não valeu em fevereiro de 2016?[2] O argumento da ministra Rosa Weber foi de que aquilo que o plenário decidira e fora reforçado (contra o voto dela) em outubro de 2016 tinha de ser mantido para conservar a estabilidade, a coerência e a integridade. Tanto é que a ministra citou textualmente o artigo 926 e também a Ronald Dworkin, corifeu da coerência e integridade no Direito (cujos institutos ingressaram no CPC por minha iniciativa, no que foi chamada de emenda streckiana).

Ora, em face disso, permito-me indagar, com todas as venias: qual é o marco temporal para o início da coerência a ser defendida pela — ou com a — colegialidade? A colegialidade da ministra (e de quem defende essa tese no Brasil) vale só a partir de determinada data? A colegialidade vem de um grau zero de significação? Há um big bang pelo qual exsurge a colegialidade? No princípio era a colegialidade? Afinal:

1. Se havia uma maioria desde 2009 (ano da virada a favor da efetiva presunção da inocência) que, inclusive, deu azo a uma alteração legislativa — sim, há parlamento por aqui — por qual razão, segundo e seguindo a tese da colegialidade professada pela ministra, seria legítimo que o STF pudesse ter alterado a sua jurisprudência, sem qualquer alteração do quadro fático-jurídico já existente, em fevereiro de 2016 e sem uma cuidadosa prognose? Atenção: estou jogando o jogo segundo e seguindo as regras da própria ministra Rosa Weber.

Na verdade, o que a ministra fez foi confundir (e ignorar a relação necessária d)os conceitos de coerência e integridade de uma forma que passa longe da proposta de Dworkin. Isto porque, em seu Law’s Empire, Dworkin fala de coerência de princípio, não de resultado. Votar contra a presunção da inocência em nome do “princípio [sic] da colegialidade” é manter coerência? Colegialidade é só forma? É puro consenso?

De minha parte, afirmo que, se a opção fosse por ser coerente com o que há de mais fundamental na democracia, o voto seria pelo que está na Constituição Federal de 1988, a presunção da inocência. Isto porque a integridade controla e baliza a coerência. Seja coerente sem ter integridade, e você pode ser coerente no erro. É algo como “você errou? Não tem problema, é só continuar errando.”

Se havia dúvida acerca da interpretação do inciso LVII da CF (havia uma posição diferente até 2009), essa se desfez com o surgimento de uma integridade forte, a alteração legislativa. Afinal, lei vale mais do que interpretação do STF (a não ser que este resolva fazer uma Súmula Vinculante…).

Ora, a colegialidade não pode ter começado em 2016, pois não? Logo, a tese da colegialidade é derrotada pela própria colegialidade. A menos que se entenda que a Constituição pode ser derrotada por argumentos morais (impunidade, voz das ruas, efetividade do direito penal, etc), os quais, uma vez obtendo maioria, devem ser mantidos por coerência. Bom, isso pode ser coerência baseada em argumentos morais (de difícil comprovação), mas não no Direito (que é de fácil constatação). Se argumentos morais podem corrigir o Direito, quem poderá corrigir os argumentos morais?

Post scriptum: De como argumentos morais podem criar uma sinuca de bico

Li a nova ADC interposta pelo PCdoB e vi que, com ela, o STF ficará em um impasse. Tenham paciência e me acompanhem:

1. A ADC pede o bloqueamento (suspensão) de todas decisões de prisões baseadas na automaticidade da prisão, isto é, as prisões que seguem o que está escrito na Sumula 122 do TRF-4 (ou, mesmo sem ela, qualquer prisão, emanada de qualquer tribunal, que tenha sido determinada tendo como base a tese esgrimida em apenas dois votos do STF — Barroso e Fux — de que a própria condenação em segunda instância é o fundamento ex lege do inicio do cumprimento da pena); essa tese foi, inclusive, levantada pelo ministro Gilmar Mendes no seu voto em plenário, citando texto meu aqui do ConJur, em que está demonstrada a existência de apenas dois votos a favor da automaticidade [3].

2. O que a nova ADC pede — corretamente — é que sejam bloqueadas ex tunc e ex nunc as prisões fundamentadas em uma tese que o STF não sufraga, eis que até Fachin fala em “possibilidade” e não em “obrigatoriedade ou em automaticidade”.

3. Consequentemente, a sinuca de bico está nesse ponto: se o STF confirma, mesmo, que só há esses dois votos a favor da automaticidade, deve conceder a liminar (ou provimento no mérito);

4. Ou, para escapar da sinuca, o STF constrói uma nova maioria a favor da automaticidade.

5. Porém, se assim fizer (construir nova maioria), os efeitos colaterais serão enormes, porque toda e qualquer condenação em segundo grau acarreta(rá) automaticamente a ida a prisão. Isso nem Teori queria. E nem mesmo Fachin quer isso. Ou quererá? A ver, pois.