“A concepção de Deus é indigna de um homem livre”. Por Camila Nogueira

Atualizado em 7 de janeiro de 2016 às 20:19
Os anjos de Rafael
Os anjos de Rafael

Em 1927, Bertrand Russell escreveu um ensaio chamado “Por que não sou cristão”, do qual extraímos as passagens abaixo para a nossa série Conversas com Escritores Mortos.

Mr. Russell, o que define um cristão?

Existem dois itens que são essenciais para que uma pessoa se autointitule cristã. O primeiro é de natureza dogmática – isto é, você deve acreditar em Deus e na imortalidade.

Ambas as coisas são necessárias?

Se você não acredita em Deus nem na imortalidade, não acho que possa ser considerado um cristão. O segundo item como o próprio nome sugere, é ainda mais importante: um cristão deve ter algum tipo de crença sobre Jesus Cristo.

Como assim, “algum tipo de crença”?

Um cristão deve acreditar que, senão divino, Cristo era ao menos o mais digno e mais sábio de todos os homens.

O senhor, Mr. Russell, é cristão?

Não. Eu não acredito em Deus nem na imortalidade, nem acho que Cristo tenha sido o mais sábio dos homens, embora admita que ocupa uma posição privilegiada no ranking de moralidade e bondade.

Voltemos ao início, Mr. Russell. Acreditar na imortalidade, em Deus e em Cristo é o bastante para se intitular um cristão?

Nos dias de hoje, sim. Mas antigamente eu não poderia ter tomado uma definição “elástica” desse jeito do cristianismo. A religião era muito mais sanguinária. Por exemplo, incluía a crença no inferno. Acreditar nas profundezas do inferno era um item essencial para proclamar-se cristão até pouco tempo atrás.

O senhor afirmou que não acreidta em Deus. Se importaria em nos explicar melhor a razão pela qual fez tal declaração?

A existência de Deus é uma questão muito séria, e para lidar com ela de modo adequado eu teria que tomar seu tempo até que o rei Arthur se reerguesse. Vou ser muito breve. Um dos dogmas da Igreja Católica é que a existência de Deus pode ser provada por uma razão pura. Para criarem tal dogma, naturalmente, preparam argumentos capazes de sustentá-lo. Há vários deles, mas é melhor nos focarmos em alguns.

Por qual começamos?

Pelo “Argumento da Primeira Causa”, pois é o mais simples de se compreender. Ele diz que tudo que vemos nesse mundo tem uma causa, e que se você retornar ao início de tudo, deve haver uma Primeira Causa. E, a esta causa, damos o nome de Deus.

Esse argumento continua forte nos dias de hoje?

Não, graças aos avanços da ciência.

O senhor sempre posicionou-se contrário a ele?

Quando eu era jovem e estava debatendo tais questões com seriedade em minha mente, por um bom tempo acreditei no “Argumento da Primeira Causa”.

O que o fez mudar de ideia?

Aos dezoito anos, li a autobiografia de John Stuart Mill. Nesse livro, há a seguinte frase: – “Meu pai ensinou-me que a questão quem me criou? não pode ser respondida, uma vez que sugere imediatamente a questão quem criou Deus?”

Vamos partir para o próximo argumento, então.

O próximo argumento é o “Argumento das Leis Naturais”. Ele foi o mais usado durante o século XVIII, especialmente sob influência de Sir Isaac Newton e sua cosmologia. As pessoas viam os planetas rodeando o sol e isso fez com que imaginassem que a vontade de Deus fazia com que os planetas se movessem daquele modo em particular.

Esse argumento também perdeu a validade para o senhor?

Atualmente podemos explicar a lei da gravitação daquele modo complicado de Einstein. Eu não pretendo explicá-la porque isso tomaria algum tempo; o importante é que não temos mais a lei do sistema newtoniano, no qual os planetas se moviam de uma maneira que ninguém era capaz de entender.

Hmmm…

Falemos agora do “Argumento do Desígnio”. Todo mundo o conhece – tudo o que há nesse mundo foi feito para que pudéssemos nos adequar a ele e, se o mundo fosse ligeiramente diferente, estaríamos perdidos. Às vezes, ele é usado de maneira bem curiosa: alguns dizem que os coelhinhos tem rabos brancos porque é mais fácil de atirar neles.

Sinceramente, não sei o que os coelhinhos pensariam dele.

O fato é que, desde Charles Darwin, passamos a entender muito melhor a razão segundo a qual as criaturas se adaptaram ao ambiente. Não é que o ambiente foi criado de modo a adequar-se a elas – elas evoluíram, e essa é a base de toda a adaptação.

Essa é a única razão pela qual o senhor não acredita no “Argumento do Desígnio”?

Não. Quando pensamos em tal argumento, é realmente surpreendente ver que as pessoas muitas vezes acreditam nele sem imaginar que esse mundo, com todos os seus defeitos, é o melhor que um ser onipotente e onisciente foi capaz de produzir em milhões de anos. Eu não sou capaz de acreditar nele. Deus não pôde criar nada melhor do que a Ku Klux Klan ou os fascistas? Além disso, se aceitarmos as leis básicas da ciência, sabemos que a vida no nosso planeta terminará; um estágio do sistema solar aniquilará a Terra.

Estou ficando muito magoada.

Já me disseram isso – “Oh, o que você diz é depressivo, e se as pessoas acreditassem nisso não teriam mais motivos para viver”. Tolice! Ninguém realmente se preocupa com o que está para acontecer em milhões de anos. E, se acham que se preocupam, estão enganando a si mesmos. Estão preocupados com algo muito mais mundano, como uma indigestão. Saiba que ninguém morre de tristeza, nem mesmo se pensar no que acontecerá ao mundo em milhões e milhões de anos.

Mesmo assim. Ninguém saberá o que fizemos. Os eventos pelos quais a humanidade passou… O Renascimento, a Revolução Russa… Tudo será esquecido.

Admito que existe um aspecto melancólico nisso. Ao menos na teoria, pois quando observo o que os humanos fazem com suas vidas, é quase um consolo. Mas não é o bastante para entrar em desespero. Volte sua atenção para outras coisas.

Como a minha digestão… Muito bem. E qual é o próximo ponto?

A parte intelectual, fortalecida por Immanuel Kant. A argumentação de Kant foi muito forte durante o século XIX.

Quais eram os argumentos de Immanuel Kant?

Um deles era que não haveria certo nem errado se Deus não existisse.

O que o senhor acha dessa argumentação?

Se você está certo de que existe uma diferença entre o certo e o errado, então se encontra na seguinte situação: Tal diferença foi decretada por Deus ou não? Se foi, então para o próprio Deus não há diferença entre o bem e o mal, uma vez que não é mais significante dizer que Deus é bom.

Eu não entendi absolutamente nada…

Se a senhorita disser, como dizem os teólogos, que Deus é bom, a senhorita deve dizer que o bem e o mal tem algum significado independente do decreto divino. E, se você disser isso, então estará deixando implícito que não é somente a partir de Deus que o certo e o errado existem, mas que eles partem de uma lógica anterior a Ele. A senhorita pode afirmar que existe uma divindade superior que deu ordens para que Deus criasse esse mundo, ou falar como alguns religiosos (e devo admitir que essa linha de argumentação é plausível) – que o mundo como o vemos foi adulterado pelo diabo enquanto Deus não via. Como eu disse, esta é uma argumentação plausível e não estou preocupado em refutá-la.

Nesse caso, passe para frente.

E então chegamos a outro argumento moral. O da justiça. Isto é, que a existência de Deus é necessária para trazer justiça ao mundo. Se existe muita injustiça nesse lugar do universo em que vivemos – onde os bons sofrem e os maus prosperam –, o próximo plano as remediará. Para isso, é necessário que existe Deus, o Céu e o inferno.

É um argumento interessante.

Muito. Quando o analisamos do ponto de vista científico, pensamos: “A verdade é que eu só conheço esse mundo. Não sei absolutamente nada sobre o resto do universo, mas se levarmos em conta as possibilidades, podemos dizer que, sendo esse mundo a amostra grátis, tudo indica que o outro mundo também será injusto”.

Como?

Suponha que você pegue um cesto de laranjas. Todas as laranjas do topo estão estragadas. Você não vai dizer: “Ah, as debaixo certamente estarão boas, pois assim a balança será equilibrada” – e sim, “Aposto que todas as laranjas do cesto estão estragadas”.

Acreditar em Deus não é muitas vezes algo que vem de dentro?

Sim, e a maior parte das pessoas acredita em Deus porque foi criada assim. Mas acho que a segunda principal razão é um desejo de segurança.

Quais são as suas considerações pessoais em relação a Cristo?

Historicamente, a existência de Cristo é duvidosa. E, se ele realmente existiu, não sabemos quase nada sobre ele. Portanto, não me preocupo com o aspecto histórico. Vou preocupar-me com o Cristo tal como aparece na Bíblia. Sua imagem é relativamente positiva, mas não posso acreditar que tenha sido mais sábio do que outros antes e depois dele. Não pretendo desvalorizá-lo de modo algum, mas colocaria Buda e Sócrates em uma esfera elevada de sabedoria e virtuosismo.

O que o senhor acha da moralidade cristã?

Assustadora. Cristo, tal como retratado na Bíblia, certamente acreditava na punição eterna. Muitos padres cristãos acreditam que aqueles que não ouvem suas pregações serão punidos a partir de torturas inimagináveis nas profundezas sombrias do Inferno.

Isso é meio sinistro.

A gente não vê nada disso em Sócrates, por exemplo. Ele era ameno e cortês diante daqueles que não se interessavam no que dizia; e, para mim, esta é uma atitude muito mais sábia e digna do que a indignação.

O senhor considera a doutrina cristã cruel?

A doutrina cristã é mais que cruel; ela atirou a crueldade sobre o mundo e deu-nos gerações de pessoas torturadas cruelmente – mas é claro que não podemos jogar a culpa em Cristo. Bem, se levarmos em conta o modo como seus cronistas o apresentam, somos levados a crer que a culpa é um pouquinho dele, sim.

Há mais algum motivo pelo qual as pessoas aceitam a religião?

Muitas pessoas aceitam a religião por motivos emocionais, pois crescem ouvindo dizer que é errado negar a religião, porque ela proporciona virtudes aos homens. Não posso acreditar nisso.

Por que?

Porque embora sejamos levados a crer que somos perversos e levianos quando deixamos de seguir a religião cristã, me parece que aqueles que a seguem são mais perversos do que aqueles que não seguem religião alguma.

Como assim?

É um fato curioso, mas quanto mais intensa tenha sido a religiosidade em qualquer período da história humana, e quando mais profundas tenham sido as crenças dogmáticas, mais alto foi o nível de crueldade. Nas eras da fé, quando os homens realmente acreditavam na religião cristã com todas as suas particularidades, houve a Inquisição, com todas as suas torturas – milhões de pessoas azaradas foram queimadas. David Hume afirmou muito corretamente que o espírito religioso tende mais a inflamar o fanatismo do que a promover a paz e a caridade.

Hmmm…

Você concordará se analisar os eventos históricos. As igrejas costumam posicionar-se contra cada pequeno progresso nos sentimentos humanos, cada melhoria nas leis, cada passo em direção à paz, ao fim da segregação racial ou abolição da escravidão – ou seja, cada progresso que acontece no mundo.

Continue.

Há muitos modos através dos quais a Igreja, insistindo em uma suposta moralidade, inflige em todo tipo de gente um sofrimento desnecessário e imerecido.

O senhor considera correta a afirmação de que a religião é baseada antes de qualquer outra coisa no medo?

Seria muito difícil discordar disso, e esse medo tem dois lados: Um deles consiste no terror do desconhecido e o outro, como eu disse, no desejo que temos de possuir um querido irmão mais velho que ficará ao nosso lado durante todos os momentos difíceis. O medo é a principal base da religiosidade – medo do mistério, medo da derrota, medo da morte. Nos recuperamos desse medo apenas através da ciência, que pode nos ajudar a superar esse receio que aterrorizou a humanidade por séculos. A ciência nos ensina a deixar de procurar por mais um suporte imaginário, por aliados no céu… Ela nos ensina a realizar nossos esforços aqui embaixo, a fim de fazermos desse mundo o melhor lugar possível.

O que fazer?

Por conta própria, devemos olhar com justiça e objetividade para o mundo – as coisas boas, as coisas ruins, sua beleza e sua feiúra; vê-lo tal como é, e não temê-lo. Conquistar o mundo a partir da sabedoria e da inteligência e não se submeter ao terror proveniente delas. A concepção de Deus deriva dos antigos despotismos. É uma concepção indigna de um homem livre.

Uma concepção “indigna de um homem livre”? Por que?

Quando vemos, nas igrejas, as pessoas se humilhando e declarando o quão pecadoras são, parece-me consistente afirmar que não se respeitam como seres humanos dignos. É necessário que nos levantemos e encaremos o mundo face a face, com sinceridade. E então devemos melhorá-lo.

Como podemos melhorá-lo?

O mundo que eu idealizo precisa de conhecimento, bondade e coragem. Ele precisa de uma perspectiva destemida e de uma inteligência independente. Para mudarmos o mundo, precisamos de olhar com esperança para o futuro, e não nos prendermos a um passado que está morto há tanto tempo.