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A cultura asfixiada e os seus algozes. Por Kakay

Mario Frias e Bolsonaro. Foto: Reprodução

Por Kakay

“Nunca escrevi

sou apenas um tradutor de silêncios”

Mia Couto

Constatar, a esta altura, que a cultura brasileira está sob ataque oficial soaria óbvio para qualquer observador minimamente atento. Além dos flertes quase diários com a censura e do vergonhoso aparelhamento de instituições do quilate de um Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), os principais mecanismos de apoio à produção artística estão paralisados, ou quase isso, há pelo menos dois anos.

Não é falta de dinheiro. Os recursos necessários existem, estão empenhados e, legalmente, não podem ter outra destinação. Também não é questão de coibir desvios, pois a esmagadora maioria dos produtores sempre prestou suas contas em dia. É o governo que leva, literalmente, décadas para analisá-las, dando a impressão de que não foram prestadas. É descaso mesmo, ou, pior, um plano macabro.

Sem acesso aos recursos, a produção cultural independente, que não conta com os próprios meios de difusão, está à beira de um colapso. As consequências sociais são graves, particularmente em um momento de tamanha vulnerabilidade de um setor formado, em sua maioria, por empresas de pequeno porte e que, por suas características, foi profundamente atingido pela crise da Covid-19.

Ruim para o setor cultural, péssimo para o Brasil, que, apesar de nem sempre nos darmos conta disso, é uma potência cultural. O caso da música talvez seja mais evidente, como sabem todos que tiveram a oportunidade de visitar outros países, mas nossa produção artística como um todo, do audiovisual à literatura, da arquitetura ao design, das artes plásticas à arte de rua, conta, há muito tempo, com amplo reconhecimento internacional.

A estrutura de fomento e regulação que surgiu na esteira da Constituição de 1988 e se expandiu nos anos 2000 mudou esse setor de patamar. No audiovisual, a produção nacional passou de meia dúzia de filmes por ano no final, na década de 1990, para quase 200 longas-metragens em 2018, antes do desmantelamento da Ancine (Agência Nacional de Cinema). No agregado, a cultura responde por algo entre 2% e 3% do PIB e emprega 5 milhões de pessoas.

Por outro lado, o conjunto dos incentivos fiscais à cultura não atinge um por cento do total das renúncias federais. Pelos números do próprio governo federal, atestados pela FGV, cada real investido em projetos culturais incentivados retorna R$ 1,59 para a economia do país. Descuidar dessa política é, portanto, uma insensatez, não apenas sob os aspectos social e geopolítico, mas também econômico.

Só que além de cruéis, ineficientes e estúpidas, as ações e omissões do governo Bolsonaro nessa área (e não apenas nessa, sabemos) são simplesmente ilegais. A Constituição impõe ao Estado a obrigação de apoiar e incentivar a cultura brasileira. Não se trata de opção programática, mas de uma obrigação que se impõe a todos.

A obediência aos preceitos constitucionais é parte indissociável do princípio da legalidade, um dos que regem a administração pública. Quando um agente público, de qualquer nível hierárquico, atenta contra esses princípios —por exemplo, retardando ou deixando de praticar, indevidamente, ato de ofício— comete um ato de improbidade administrativa, neste caso o previsto no art. 11, inciso II, da lei 8.429/1992, a Lei de Improbidade Administrativa.

De quem o comete espera-se, no mínimo, o ressarcimento integral do dano, se houver, além perda da função pública, suspensão dos direitos políticos e pagamento de multa de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente. Se houver prejuízo ao erário ou alguma vantagem indevida (não apenas financeira), a pena pode ficar bem pior e sua aplicação se dá independentemente de outras, inclusive as previstas no Código Penal.

O Ministério Público Federal já se atentou para essa realidade e começa a apertar o cerco, ajuizando ações de improbidade administrativa e cobrando explicações e providências dos agentes responsáveis.

Infelizmente, essa parece mesmo ser a única forma de evitar que décadas de investimento na construção de um setor cultural condizente com a potência da própria cultura brasileira se percam em uma ode à ignorância.

“Só uso as palavras para compor os meus silêncios”

Manoel de Barros

Diario do Centro do Mundo

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