“A curva exponencial desta epidemia parece saída de um livro de matemática”, diz matemático

Atualizado em 20 de março de 2020 às 20:45
Médicos em ação contra o coronavírus. Foto: AFP

Publicado originalmente pelo Diário de Notícias:

Por Filomena Naves

Com a pandemia a alastrar a grande velocidade, sobretudo na Europa, região que a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera agora o seu epicentro, crescem as incógnitas acerca do que vai passar-se a breve prazo. Com os seus cálculos e modelos, a matemática pode, no entanto, abrir janelas para esse futuro e dar-nos uma antevisão do que aí vem.

O que ela mostra, porém, pelo menos para já, não é muito animador, garante o matemático Jorge Buescu. “Em Portugal estamos numa curva exponencial, que acelerou nos últimos dois dias, e que tem agora uma taxa de crescimento de novos casos de 44%”

Ou seja, “o número de novos casos tem estado a duplicar a cada dois dias” e, a este ritmo, se não suceder nada em contrário, “esta segunda-feira já teremos mais de 300 casos e dentro de uma semana serão entre três e quatro mil”

Professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Jorge Buescu tem estado a seguir em direto a evolução dos números do covid-19, utilizando “um modelo matemático simples”, como lhe chama, e não esconde a preocupação com o que está a acontecer e com o que pode seguir-se.

O que o modelo mostra nos países que analisei, que são Portugal, Itália, França, Espanha e Alemanha, é que a progressão epidémica é uma curva exponencial, que parece saída de um livro de matemática”, diz. “No mundo real, que é suficientemente complicado para os modelos simples não funcionarem, não costuma ser assim. Esta é a primeira vez que vejo uma curva assim no mundo real”, garante.

Uma curva exponencial existe quando os números crescem e, ao mesmo tempo, a sua taxa de crescimento também aumenta.

Ou seja, para que estas curvas epidémicas se acalmassem, por assim dizer, o número de novos casos teria de começar a diminuir. Mas não é isso que está a acontecer, pelo menos nos países europeus, neste momento a braços com números galopantes, apesar das medidas restritivas impostas em alguns deles, incluindo Portugal, que não têm precedentes em tempo de paz.

O país nesta altura em situação mais grave é a Itália, que já soma mais de 21.157 casos, 1441 dos quais mortais. Só este sábado, o país registou mais 3497 novos casos, o número mais alto num só dia desde que a epidemia ali se declarou.

Espanha é outro caso, com os números a cresceram a grande ritmo. São já mais 6315 os casos de covid-19 em Espanha, 193 dos quais mortais. Este sábado o país registou 1083 novos casos.

Portugal segue ainda com números mais baixos, registando neste domingo um total de 245 casos, mas a tendência de crescimento é idêntica.

“A situação é muito preocupante, e o mais preocupante é que não vermos uma luz ao fundo do túnel em relação à Europa, porque ainda não aconteceu o pico da epidemia”, nota Jorge Buescu, sublinhando que, “com os parâmetros de incerteza que temos, ninguém consegue estimar quando ocorrerá esse pico”.

Os parâmetros de incerteza são vários, relacionados com o vírus. Ninguém sabe, por exemplo, como vai comportar-se quando o tempo ficar mais quente na Europa, ou que vai acontecer em África, onde os sistemas de saúde mais frágeis. O que se sabe, isso sim, é que sendo um agente patogénico novo, não existe imunidade para ele na população mundial e, portanto, toda a gente é suscetível de ficar infectada.

A Itália, o país nesta altura com a situação mais grave, foi o primeiro na Europa a colocar todo o território de quarentena, isolando os seus mais de 60 milhões de habitantes, e encerrando todos os espaços públicos à exceção de farmácias, supermercados e bancos. Por isso mesmo, acaba por ser uma espécie de “tubo de ensaio para o resto da Europa”, sublinha o professor da universidade de Lisboa.

“Apesar das medidas ali em vigor desde há seis dias, o número de novos casos continua a aumentar e hoje [este sábado] a Itália teve mesmo o maior número de sempre de novos casos” – 3497. Isso mostra que a curva epidémica não está sequer perto do ponto em que há de começar a infletir.

As incertezas de um novo vírus

Foi ainda em janeiro que Jorge Buescu, alertado por um amigo, começou a olhar para os números da epidemia, quando ela estava ainda praticamente circunscrita à China. Foi fazendo cálculos, mas pelas suas contas, não parecia haver grande problema. Foi o que escreveu no dia 1 de março, num post no facebook, que acabou por se tornar viral.

Reconhece agora que “estava a desvalorizar” a situação. “Quando comecei a olhar para os números estava infinitamente longe de pensar que a epidemia iria chegar cá com estas proporções”, diz. Hoje sabe exatamente o que subestimou.

“Por ignorância, subestimei o facto de a taxa de mortalidade e de contágio ser aqui superior à da China, por causa do perfil demográfico da Europa. Aqui a população é mais idosa do que na China”, explica.

Por outro lado, com os cálculos feitos por baixo, acabou por escapar-lhe uma outra realidade, reconhece. A de que “no mundo real, isto rebenta com qualquer sistema de saúde”.

Esse é, de resto, um dos grandes riscos desta pandemia em aceleração, que a Itália, na frente do turbilhão, já está aliás a sentir na pele, com os relatos que chegam dali, da falta de ventiladores para todas as necessidades, que está a obrigar os médicos a fazer escolhas trágicas.

Olhar para a epidemia global com as ferramentas da matemática fornece informações epidemiológicas que de outra forma seriam invisíveis e permite estimar tendências e informar as decisões para conter a epidemia.

Por isso, sublinha Jorge Buescu, “em Portugal é muito importante que as pessoas cumpram as medidas de isolamento social”, estimando “que teremos em Portugal poucos dias para reforçar os meios hospitalares dos cuidados intensivos”.

“Há estudos nos Estados Unidos que mostram que, se pelo menos 75% da população não cumprir as medidas de isolamento social, as medidas de restrições não têm o efeito pretendido”, alerta.

Sem medicamentos específicos ou uma vacina para combater e prevenir a nova doença, os países estão a optar por medidas restritivas sem precedentes, fechando-se, e fechando atividades e espaços públicos, para tentar alongar no tempo o número de novos casos, de forma que os sistemas de saúde não fiquem de repente assoberbados e incapazes de responder, como já está a acontecer em Itália.

Em relação aos outros países europeus, Portugal teve a vantagem de a epidemia ter chegado 20 dias mais tarde em relação a Itália, e 10 em relação Espanha, França ou Alemanha, permitindo a determinação de uma série de medidas, que incluem o fecho de escolas e universidades, de equipamentos e espaços públicos diversos, e o cancelamento de espectáculos e atividades desportivas por todo o país. Veremos se é suficiente, e se foi a tempo.

Peça atualizada às 13.00 com o novos números em Portugal