A “democracia militante” de Loewenstein e a luta contra o fascismo bananeiro de Bolsonaro. Por Miguel do Rosário

Atualizado em 23 de julho de 2021 às 17:20
Jair Bolsonaro. (crédito: Evaristo Sá/AFP)

Publicado originalmente no site O Cafézinho

POR MIGUEL DO ROSÁRIO

Filósofo e cientista político, Karl Loewenstein é um velho conhecido na academia brasileira, não apenas por seus excelentes livros sobre direito constitucional, ideologia e regimes políticos, como também por uma das mais originais análises já escritas sobre o Estado Novo.

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Ao se debruçar sobre o regime de Getúlio Vargas, Lowenstein defendeu-o de qualquer associação ao fascismo. Autoritário, sim, fascista, não! Alguns dizem que Lowenstein cumpria uma agenda política, tentando estabelecer pontes entre Vargas e Roosevelt e engajar o Brasil na luta contra o fascismo europeu. Pode ser.

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De qualquer forma, não é desse texto que pretendo falar aqui, e sim de um outro, um ensaio publicado na American Political Science Review, em junho de 1937, intitulado “Militant Democracy and Fundamental Rights” (Democracia militante e Direitos Fundamentais).

Loewenstein nasceu e estudou na Alemanha, mas se viu forçado a migrar para os Estados Unidos em 1933, quando Hitler assumiu o poder.  Conhecia como ninguém o processo político de corrosão democrática que havia levado ao nazismo.

No ensaio em questão, Loewenstein argumenta que o fascismo não é uma “ideologia política” e sim uma “técnica política de tomada de poder”.  E isso porque ele não identificava no fascismo nenhum conjunto de ideias, valores ou projetos com alguma coesão.

A observação me fez lembrar do governo Bolsonaro, eleito sob a bandeira de um governo contrário a práticas de fisiologismo partidário, ideias que agora o presidente da república descarta inteiramente, chegando a admitir que, ele mesmo, é parte do centrão.

Não há propriamente ideologia no governo Bolsonaro, e sim apenas a obsessão pelo poder.

Um dos aspectos interessantes do pensamento de Loewenstein é que ele, em nenhum momento, mistura o fascismo europeu clássico, representado por Hitler, Mussolini, Franco, à União Soviética de Stalin ou ao marxismo. Ele recusa qualquer falsa equivalência. O fascismo é um regime da direita política, e uma de suas fórmulas para ascender ao poder sempre foi produzir uma imagem exagerada e distorcida do socialismo e do comunismo. As técnicas são sempre as mesmas, diz o cientista. Se ele tivesse tido tempo de conhecer o governo brasileiro atual, ficaria chocado ao ver o presidente Bolsonaro usando exatamente os mesmos clichês anticomunistas dos fascistas da década de 30.

Loewenstein explica que o fascismo floresce à sombra das democracias, explorando o ambiente de tolerância e respeito às liberdades que as caracterizam.

“O valor mais importante da demoracia é a noção de legalidade. O fascismo então assimila oficialmente a legalidade. Desde que a experiência adquirida em outros países não recomenda o golpe de Estado, o poder é buscado na forma de uma legalidade estudada. Se possível, o acesso é obtido através da conquista de cadeiras legislativas. Esse propósito é facilitado pela mais aberta brecha da doutrina democrática, a representação proporcional. Democracias são forçadas legalmente a permitir a emergência e crescimento de partidos e movimentos antiparlamentares e antidemocráticos, sob a condição de que eles se conforme externamente aos princípios da legalidade e da liberdade de opinião. Esse exagerado formalismo do Estado de Direito, sob o charme de uma equidade formal, não acha correto excluir do jogo os partidos e movimentos que negam a própria existência de suas leis.”

O ensaio de Loewenstein identifica ainda uma outra situação com ecos incrivelmente atuais, que é o uso, pelo fascismo, da simbologia militar, como forma de impressionar as massas e a burguesia.

“Concomitantemente, o movimento [fascista] organiza a si mesmo na forma de corpos semi-militares, ou seja, uma milícia partidária ou exército privado do partido.  (…) Essa técnica tem forte apelo e propósitos emocionais. Em primeiro lugar, a mera demonstração de força militar, mesmo sem uso real de violência, irá produzir profunda impressão no burguês pacífico e respeitador das leis. Sua manifestação, tão estranha às expressões normais da vida partidária é, como tal, fonte de intimidação e de tensão emocional para os cidadãos.  Por outro lado, enquanto os partidos democráticos são caracterizados por uma certa flexibilidade espiritual em relação às suas causas, a organização militar dos movimentos fascistas dá ênfase à natureza irrevogável da lealdade política. Ela cria e mantém o sentido de companheirismo místico de todos por um e um por todos, esse exclusivismo da obsessão política, em contraste com o qual a a lealdade partidária usual é apenas uma entre várias lealdades plurarísticas. Quando a lealdade ao partido finalmente transcende a lealdade ao Estado, é criada uma atmosfera perigosa de legalidade dupla. A rotina militar, por ser direcionada contra a desprezada democracia, é glorificada eticamente como parte do simbolísmo partidário que, por sua vez, é parte de um processo de dominação emocional. (…) O efeito que o militarismo produz numa burguesia amedrontada é ainda mais duradouro porque ele oferece um contraste entre a firmeza de propósitos do fascismo com as flutuações instáveis da vida política tradicional.”

Para Loewenstein, a democracia precisa jogar mais duro, e identificar os perigos que a rondam com mais assertividade, para defender o próprio sistema.

Entretanto, a lição mais importante é que a democracia precisa aprender a jogar o jogo das emoções coletivas. O fascismo tem uma vantagem sobre a democracia porque ele não parece limitado a usar a razão ou a ciência. Neste sentido, a desenvoltura moral do fascismo é impressionante. Mais uma vez, lembremos do governo Bolsonaro, e a incrível facilidade com que seus apoiadores disseminam mentiras, as quais, mesmo que desmentidas cabalmente por fontes diversas, ainda assim continuam a ter prestígio e a ser repetidas em seus círculos.

Para se proteger da destruição, a democracia precisa se tornar “militante”, ou seja, não bastar apenas reagir aos ataques das forças antidemocráticas, mas partir para a ofensiva.  Alguns excessos formalistas devem ser postos de lado se é necessário defender o sistema. Naturalmente, não se trata de normalizar nenhum Estado de Exceção, nem validar a doutrina schimittiana, segundo a qual a soberania pertence exclusivamente a quem possui autoridade para suspender a Constituição em momentos de crise. O que Loewenstein defende é um meio termo entre a violência absoluta, autojustificada pelas crises no poder, de Carl Schmitt e o legalismo paralisante e autodestrutivo da República de Weimar: um governo democrático precisa, por vezes, tomar a iniciativa de coibir movimentos e forças que ameacem a própria democracia.

Esse é um debate extremamente atual, porque nos ajudaria a encontrar justificativas democráticas para a suspensão de canais e páginas que disseminam fake news sobre o tratamento da Covid, ou que convocam violências contra as instituições democráticas e seus representantes.

Para Loewenstein, dentre as causas do sucesso do nazismo alemão, estaria a ausência de uma militância ativa da república de Weimar contra movimentos subversivos fascistas, mesmo que eles fossem reconhecidos como tais, e isso deveria servir de alerta para todos.

As lições de Loewenstein, forjadas na mais terrível experiência histórica dos últimos séculos, tem enorme utilidade para o Brasil do século XXI. Quando Bolsonaro promove abertamente campanha contra a legitimidade das urnas, dissemina mentiras sobre fraudes eleitorais, ataca outros países, como fez com a Argentina essa semana, ele cumpre uma agenda política muito clara, que é desviar o foco dos terríveis problemas sócio-econômicos que afligem o país. Não apenas isso. Bolsonaro usa uma técnica política de tomada de poder, já testada, com sucesso, em diversos momentos da história. Cabe ao regime democrático identificar o perigo que essa técnica oferece, e tomar a iniciativa de impedir, com inteligência, agilidade e firmeza, que o fascismo se espalhe pelo corpo social.

Como não é uma ideologia, o combate ao fascismo não sofrerá as mesmas consequências do combate ao marxismo, que acabou por fazê-lo crescer ainda mais, pois ideias são resistentes. Sendo apenas uma técnica política de tomada de poder, que abusa dos medos e emoções coletivas, a luta antifascista precisa aprender a também usar as emoções. As instituições democráticas devem reprimir duramente as ações antidemocráticas promovidas por esses movimentos.

É preciso matar o mal pela raíz. Felizmente, parece que muita gente já entendeu isso. A prisão do deputado Daniel Silveira, por suas ameaças aos ministros do STF, é um exemplo de “jogo duro”. A derrubada de canais fascistas que espalham mentirar, por decisão de corporações privadas, mas avalizadas pelo judiciário nacional, é outro exemplo. Para enfrentar o fascismo, a democracia brasileira terá de deixar de ser “boazinha” ou tolerante com os movimentos antidemocráticos.

A “democracia militante” de Loewenstein e a luta contra o fascismo bananeiro de Bolsonaro. Por Miguel do Rosário. Foto: Reprodução/Cafézinho