A denúncia do juiz de Barreiras e a dor d’alma de Felipe Santa Cruz. Por Lenio Streck

Atualizado em 1 de agosto de 2019 às 9:30
Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, ofendido por Bolsonaro na última segunda-feira (29)

Publicado originalmente no Consultor Jurídico (ConJur)

POR LENIO STRECK, jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados

O atacante recebe a bola na intermediária. Corta para o meio e, numa só jogada, tira dois adversários do lance. Dribla mais um, tabela com o volante, entra na área, dribla outros dois. Fica cara a cara com o goleiro.

A jogada é de craque. Só que, na hora de definir o lance… chutou para fora. Fez tudo certo. Só faltou um pequeno detalhe que, pena, era o mais importante. Só faltou o gol.

Falo isso porque é a única analogia possível que encontrei para explicar o que fez o juiz Ricardo Costa e Silva na comarca de Barreiras, na Bahia.

Explico. Tratou-se de um APF — Auto de Prisão em Flagrante — tráfico de drogas e condutas afins. Eis o despacho, na íntegra:

No presente caso é nítido que a polícia desenvolveu superpoderes, como nos filmes de super-heróis, pois parou um carro, viu uma pequena porção de cocaína, adentrou na residência sem mandado, viu mais substância e um caderno que “provavelmente” é para o controle do tráfico.

Nunca concordei com referidas atitudes, mas o Ministério Público tem avalizado e não há qualquer punição em relação ao abuso de poder realizado em nome da “saúde pública”.

Ao Poder judiciário resta o serviço burocrático de homologar a atividade da polícia judiciária, pois se acontece diuturnamente, manter um posicionamento de relaxamento da prisão, por irregularidade no flagrante, é remar contra a maré, e confesso que cansei de defender algo que aparentemente sou voz única.

Desta forma, homologo o flagrante e para manter a ordem pública decreto a prisão do imputado, convertendo o flagrante em prisão preventiva.

Intime-se, inclusive o Ministério Público. Barreiras, 24 de julho de 2019.

O juiz vai no ponto. Como é possível, numa democracia, a Polícia não respeitar limites constitucionais?

Como pode o Ministério Público, instituição com garantias de magistratura, referendar, segundo diz o juiz, esse tipo de postura? É grave a denúncia do magistrado de Barreiras. Dito de outro modo, como pode o Estado, que se diz de Direito, atropelar as garantias mais básicas do indivíduo dia sim dia também?

Como é possível que, hoje, o papel do juiz seja visto por muita gente como sendo de mero burocrata (sic) responsável por fazer o ajuste institucional não de princípios autênticos de moralidade política, mas de um punitivismo abusivo? (Isso quando o juiz não assume o papel de investigador e acusador…!)

Esse é o busílis. Não pode ser assim. E o juiz Dr. Ricardo Costa e Silva sacou isso. Fez uma boa crítica, com ironia, sarcasmo e coragem. Em linguagem ludopédica, recebeu a bola na intermediária, deu um toque e driblou os dois zagueiros (polícia e MP). Ficou cara a cara com o goleiro.

E então isolou a bola na arquibancada. A beleza da jogada foi inversamente proporcional à do péssimo arremate. Pois é. O juiz fez tudo certo. Só faltou o gol.

Criticou os “superpoderes” da Polícia, criticou a complacência de um Ministério Público com o punitivismo autoritário em Barreiras… mas, por ter cansado de ser a “voz única” remando “contra a maré” … homologou as aludidas ilegalidades.

Ou seja: a Polícia fez o que não podia, o MP fez o que não podia, o juiz não pode ser considerado mero burocrata que homologa os erros do MP e da Polícia. O juiz sabe disso, e o que ele faz? Age como um burocrata que homologa os erros do MP e da Polícia.

Mas eu não quero só criticar. Fica, aqui, meu elogio à bela jogada do magistrado. Quando acontecer de novo, e for a hora de concluir, que ele lembre T.S. Eliot: numa terra de fugitivos, aquele que vai contra a maré é quem parece estar fugindo.

Dr. Ricardo, você não é voz única. A ela, soma-se a voz de todo democrata que leva o Direito a sério. Estamos juntos. Entendo o seu cansaço, que representa o pensamento de muitos juízes preocupados com a desprocessualização e a quebra de garantias em nome do punitivismo. Mas não podemos desistir. Repito: estamos juntos.

A barbárie vence quando os democratas desistem da civilização. Não desista, juiz Ricardo. Para que ainda haja juízes, em Berlim ou em Barreiras.

Só para registrar: Dr. Ricardo, também não dá para fundamentar assim como foi feito. Não basta dizer que prende para preservar a ordem pública, mesmo que seja para criticar a polícia e o MP. De todo modo, penso que entendi a jogada. O juiz olhou mais para a frente. No fundo, sabe que essa fundamentação será derrubada em habeas corpus. O problema é se o tribunal mantiver a prisão… A ver o resultado do habeas. Se o causídico impetrou, é claro.

Post scriptum: O dor d’alma de Felipe Santa Cruz

Com tudo o que vem acontecendo, os democratas temos que ficar atentos ao desmonte das instituições e denunciar os perigos do autoritarismo. O episódio em que o presidente da República desmente o próprio Estado e apresenta outra versão sobre o desaparecimento do pai de Felipe Santa Cruz coloca-nos à beira do Rubicão. Toda a solidariedade para com o presidente Santa Cruz. Além de triscar o Estado de Direito, o presidente da República mexeu com a dor d’alma de Felipe Santa Cruz. Fico pensando se meu pai, preso em 64, tivesse desaparecido como o pai de Felipe Santa Cruz. E que eu, menino, nunca mais o veria. Imagine alguém crescer sem o pai. É de arrepiar e de embargar a voz. Também a solidariedade à jornalista Miriam Leitão, igualmente atacada pelo presidente da República.

Jabuti não nasce em árvore. Mas não nasce, mesmo. Estamos em um perigosíssimo processo de desmonte do Estado Democrático construído com tanto esforço (ver manifesto firmado por mais de 800 advogados e professores). Agora, com o episódio Moro-hackers — e do eloquente silêncio de Raquel Dodge, preocupada com a sucessão da PGR — volta a conversa sobre a autonomia da Polícia Federal. Ora, a questão não é a autonomia da PF, mas, sim, do governo estar submetido à lei e ao Estado de Direito. Aliás, a questão é: todos estarem submetidos ao rule of law. Esse é o busílis.