A derrocada do Brasil no ranking das democracias da Economist mostra um terreno fértil para o fascismo. Por Willy Delvalle

Atualizado em 10 de julho de 2018 às 7:02

A elite econômica do Brasil aplaudir Bolsonaro não é uma novidade para quem sabe que essa classe dominante há séculos no Brasil não tem escrúpulos. Mesmo assim, como diz um amigo iraniano, Amin Shakeri, há evidências que precisam ser ditas novamente. E, por mais normal que o autoritarismo seja para essa classe, um fato novo – o que o jornalismo tradicional adora – foi produzido: ela saiu do disfarce discursivo de democrática e mostrou sua cara, da maneira mais vulgar.

Não é à toa que quando a Economist divulgou no início deste ano seu último índice de democracias no mundo, o que acontece com o Brasil não tenha sido motivo de alarde pelos grandes veículos. Em contradição com o tratamento que os grandes meios sempre deram a Dilma Rousseff, a democracia brasileira subiu de nível durante seu primeiro governo. O país estava ascendendo, ao menos segundo o cômputo geral dos 60 critérios da revista, dentre os quais o funcionamento de governo, as liberdades civis, a participação política, o processo eleitoral e o pluralismo.

O índice mostrava que houve um declínio abrupto a partir de 2015. De 7,38 em 2014 numa escala de 0 a 10, o que enquadrava o país na classificação de “democracia falha”, o país foi a 6,96 em 2015. No ano em que ela foi derrubada, a democracia continuou afundando, foi a 6,90, segundo o índice da The Economist.

Em 2017, foi a 6,86. Curiosamente, no gráfico da The Economist o número menor aparece em uma posição maior, como se tivesse havido alta. Acreditemos que foi só um erro de algoritmo.

Na América do Sul, o Brasil fica atras do Uruguai, único país latino-americano considerado uma plena democracia, que com pautas progressistas e uma ampla coalizão de esquerda manteve altos índices (acima de 8 na escala da The Economist) desde 2008.

A sabotagem à democracia, golpe que começou com Aécio não aceitando o resultado das eleições, sua aliança com Temer, Cunha e a mídia, que dizia que Cunha fazia um bem ao país ao abrir o processo de impeachment contra a presidente. Mídia que fazia o trabalho de agravar a crise, criando e reforçando uma atmosfera de puro pessimismo, e chamando manifestantes para bater panela nas ruas.

A “justiça” fez seu trabalho através de uma série de arbitrariedades impunes. Ela fez seu trabalho, através de um mecanismo histórico das elites, o abuso de poder, a transformação do público em privado. Impediu Lula de ser ministro, vazou o áudio de sua conversa com Dilma, acelerou o julgamento do primeiro para prendê-lo e impedi-lo de disputar as eleições. Qualquer cidadão francês a quem eu conte esse processo diz, de imediato, que se trata de um processo político.

Espantados, alguns amigos foram mais longe e disseram o que a mídia brasileira não diz aos brasileiros: essa sociedade está virando fascista. Na Europa, a criação desse tipo de atmosfera é conhecida. É um temor de que o regime dos anos 1930 na Itália e na Alemanha não tenham morrido de vez. O processo que conduziu a eles ainda está fresco na mente das pessoas. Processo descrito no grande clássico “Diário de uma camareira”, do gênio Luis Buñuel.

No filme, uma camareira parisiense vai ao interior trabalhar na casa de um casal burguês. Um casal que vive de aparências. Para a patroa, o que importa é o dinheiro e o luxo de seus móveis. Para o homem, o falso casamento requer a sedução das empregadas. Sua esposa envenena e mata o pai, obtendo sua paz e riqueza absoluta. Um funcionário militar e religioso mata uma pequena menina, cujo corpo é encontrado numa via remota.

A camareira, que iria deixar aquela casa para retornar a Paris, decide ficar para investigar sozinha o crime, que não despertava suficiente interesse das autoridades. Ela resolve o mistério. Mas o pobre funcionário assassino é solto por “falta de provas”. Enquanto ele chegou a ser preso, nada se fez contra o também brutal crime da mulher burguesa.

A camareira se casa com uma autoridade e entra no sistema, tornando-se também uma burguesa, ciente de que um crime ficou impune, inconsciente do outro crime, do qual ninguém fala, ninguém viu, tudo se abafou.

Uma marcha anti-estrangeiros se mobiliza. E o funcionário outrora assassino, então livre, se casa com uma bela mulher e toma conta de um comércio. A multidão anti-estrangeiros passa. Ele diz algumas palavras e a multidão as repete subindo uma rampa ao lado.

O que acontece no Brasil sobe a mesma rampa, com mais impunidade e injustiça. Marielle é a menina assassinada, cujo crime nada provoca entre as autoridades. Cujo crime nos faz cogitar que conta com a conivência, cumplicidade e a mando das classes dominantes. Mas diferente da história de Bunuel, ninguém é preso.

No Brasil, diferente da Europa, não se projeta nos estrangeiros a culpa de todos os males. O mecanismo estava presente na fala de Bolsonaro, nas vaias a Ciro. São os esquerdistas, os adeptos do busto de Che Guevara, as feministas, os negros, LGBTs, indígenas, sem terra. Sao os chamados terroristas, subversivos. Como na Europa, o culpado por todos os males do Brasil é o mais oprimido.  É um inimigo cujo boneco foi pintado em praça pública. E queimado, como numa foto, em que Dilma aparece por detrás das chamadas no corredor da entrada da redação do Estadão.

Certa vez, uma conhecida foi a uma livraria e perguntou por um livro de Marx. O vendedor lhe perguntou por que ela queria aquele livro. Começou a falar de Cuba. Ela lhe replicou: você já foi a Cuba? Ele disse que não. O sistema já conseguiu criar seus censores e defensores, os conservadores de classe média e até mesmo de classes populares que defendem os interesses que não são os seus, mas das classes dominantes. Eles são dominados, mas não percebem a dominação. Alguns são chamados de bolsominions. Não percebem que o que defendem é a autopredação.

Os aplausos a Bolsonaro são um escândalo e um grave sinal porque mostram que já nao ha mais vergonha de defender a tirania. Já é defensável atirar contra a caravana daquele que encarna o mal, a medusa estampada na capa da Veja.