A nova série de José Padilha – “O Mecanismo”, disponível na Netflix -, vem dando o que falar na imprensa e nas redes sociais.
Até a Marina Silva – aquela beata que só aparece de quatro em quatro anos – teve a pachorra de usar a execução de Marielle Franco para promover a vergonhosa série em seu Facebook (ainda não sabemos a troco de quê, mas, decerto, não foi um merchandising gratuito).
A série gira em torno da Operação Lava Jato – como se o filme “A Lei é para todos” (risos para esse título) já não fosse suficientemente vergonhoso para o cinema brasileiro.
Num episódio, o ator que interpreta o ex-presidente Lula fala em “estancar a sangria”, frase imortalizada na voz de Romero Jucá (PMDB). Questionado sobre a distorção, Padilha disse que trata-se de uma “expressão idiomática comum.”
Não força.
Toda expressão idiomática é comum, até ser marcada por algum acontecimento importante, como é o caso. Uma série sobre a Lava-Jato que atribua ao ex-presidente Lula uma frase de Jucá é, no mínimo, desonesta.
Padilha foi questionado, ainda, sobre as (tantas) outras distorções no enredo, justamente em tempos de fake news.
A justificativa não poderia ser mais estapafúrdia: “Na abertura de cada capítulo da série avisamos que fatos foram alterados para efeitos dramáticos. Para o pessoal que sabe ler, portanto, não há ruído algum!”
Primeiro, tragam o prêmio de entrevistado mais grosseiro de 2018 para o José Padilha.
Segundo, ele, melhor do que eu, deve saber que o discurso imagético do cinema – e sua importância política e social – é mais (muito mais!) incisivo do que um aviso escrito na abertura.
Padilha, que dirigiu filmes importantes para o cinema brasileiro como “Tropa de Elite”, por exemplo, agora vende para um streaming de alcance mundial uma série que pode – e vai – alterar a maneira como veem o cenário político brasileiro lá fora – se por aqui está difícil entender, imagine além de nossas fronteiras.
E vende com o discurso de estar “denunciando todo um sistema, por isso se chama O Mecanismo”. Spoiler: dá pra fazer isso sem distorcer os fatos da vida real.
Ficção e realidade podem – e devem, e é inevitável – se misturar, mas, nestas circunstâncias, qualquer distorção é perigosa. Não existe licença poética pra criar vilões políticos.
A deselegância e desonestidade do cineasta, entretanto, não surpreendem.
Surpreende, entretanto, que parceiros de trabalho dele – como Wagner Moura, por exemplo – não tenham dito uma palavra sobre a série.
Tirar o corpo fora não é exatamente o que se espera do ator, que sempre se colocou como progressista e defensor de pautas de esquerda.
“E só por isso ele tem a obrigação de se posicionar?”, alguém deve perguntar.
Tem. Viver é se posicionar. Especialmente quando se escolhe ser uma pessoa pública.
José Padilha, Wagner Moura e todos os outros que transitam no meio do cinema brasileiro sabem a importância política e social de uma série ou filme.
Kleber Mendonça Filho, ao dirigir “Aquarius” e denunciar o golpe em Cannes, sabia. Fernando Meirelles, ao dirigir Cidade de Deus, também sabia. E Padilha, ao filmar fake news sem o menor decoro, também o sabe.
Lamentável que alguns daqueles que têm um dos discursos mais incisivos – o cinema – nas mãos, usem-no com a irresponsabilidade de quem compartilha fake news na internet, só que com um alcance infinitamente maior. Lamentável que nossos atores progressistas continuem ao lado dessa gente – porque quem cala consente.
Sorte que, para cada Padilha, há um Kleber, e para cada “O Mecanismo”, há um “Aquarius”.
Vida longa ao cinema brasileiro.