
O padre Júlio Lancellotti vai dar um tempo, por ordem superior, e é provável que não volte a ser o que foi até agora. A Igreja tem essas recaídas de vez em quando. É preciso gerir pressões e desconfortos internos e, como acontece nesse caso, principalmente de fora da Igreja.
Lancellotti sabe que acontece com ele o que aconteceu muitas vezes durante a ditadura com outros religiosos. Padres e freiras inconvenientes eram silenciados ou deslocados, para que se afastassem do ambiente em que exerciam algum poder pela capacidade de falar, de ouvir e de desafiar os cercos da repressão.
Padres humanistas, e não necessariamente progressistas, continuam sendo um perigo. Mesmo quando já começam a se afastar da vida religiosa ativa. Como ocorreu com Dom Pedro Casaldáliga, o bispo combativo de São Félix do Araguaia.
Dom Pedro já havia decidido se retirar, cansado e doente, no início dos anos 2000, e foi informado de que o comando da Igreja no Mato Grosso tinha um sucessor. Mas havia um problema a resolver.
Sua vida na prelazia tinha sido tão intensa e com tantos conflitos com o poder econômico, os donos de terra, os grileiros e os amigos dos ditadores, que o melhor seria que ele se mudasse para longe. Dom Pedro ficou.
Júlio Lancellotti talvez não consiga ficar. Seu superior, dom Odilo Scherer, determinou que ele deixe de transmitir missas ao vivo pela internet, saia das redes sociais e se prepare para deixar a paróquia de São Miguel Arcanjo. Lancellotti convive com os pobres da Mooca há mais de 40 anos.
Removem padres e freiras também em tempos de democracia, sempre com o argumento de que esse rodízio é permanente, mas não para todos. Há três anos, a Irmã Lourdes Dill, de Santa Maria, no centro do Rio Grande do Sul, foi enviada para Barra do Corda, no Maranhão.
A gaúcha Lourdes era líder comunitária na região e reconhecida como uma das maiores autoridades latino-americanas em economia solidária. Tem diploma de economista e especialização em movimentos sociais e democracia participativa pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atuava havia 35 anos ao lado da agricultura familiar, do cooperativismo de todas as formas de solidariedade.
Dom Leomar Antônio Brustolin, arcebispo da Arquidiocese de Santa Maria, informou a Lourdes que a freira tinha novos desafios. Deveria levar seus conhecimentos e sua liderança para uma cidade a 450 quilômetros de São Luis. Aos 70 anos. Perto da idade em que a maioria decide parar.
Dom Pedro, Lancellotti e Lourdes incomodavam e incomodam o poder econômico, político e religioso. Eles são um problema para a Igreja, mesmo quando essa Igreja assumiu a luta contra a ditadura, por não conseguir resistir a pressões externas incontornáveis.

Hoje, a Igreja dos inconvenientes tenta se adequar aos novos tempos criados pelo mundo evangélico, num ambiente em que o ultraconservadorismo é hegemônico e politicamente impositivo.
A Igreja Católica não pode ser tão desafiadora e ‘esquerdista’ como já foi, ou perde mercado. Principalmente no mundo da fé de São Paulo, sob controle político da extrema direita que se lastreia na moral e na prosperidade evangélica.
É complicado, e o bispo que dá as ordens muitas vezes está sob pressão de ordens superiores. É bem possível que Dom Odilo também esteja. Pressionam o arcebispo, que pressiona Lancellotti, que fica sem ter como reagir.
A resistência em defesa dos religiosos ganhou a força das redes sociais, que pode ser insuficiente para impedir o que já está traçado para Lancellotti, como foi incapaz de impedir que tirassem Lourdes de Santa Maria.
Lancellotti talvez não imagine sua vida fora do lugar que o abriga e onde cumpre sua missão, sempre em nome da Igreja que agora o pune, aos 77 anos, por estar cada vez mais perto do que aprendeu com um moço chamado Jesus cristo. Toda a Igreja progressista ficou idosa e indefesa.