Segunda-feira de manhã. Paris. Centro. Não parecia que a França havia acabado de ganhar a Copa do Mundo. Parecia que não teve Copa. Não parecia com nada. Norte da cidade. A mesma impressão. No trem, um grupo de jovens cantava e gritava com a bandeira tricolor. Os passageiros, negros e brancos, impassíveis. Uma mulher de olhos verdes chegou a olhá-los, sem esboçar nenhuma reação. Nas estações, algumas com novas placas e trocadilhos sobre a vitória; apatia, indiferença. A imagem que apareceu na televisão era de Champs Elysées.

Ali havia a multidão, que esperou horas para ver a seleção passar. No ônibus, os jogadores eufóricos. A multidão, também. Uma repórter dizia emocionada que era uma alegria imensa. Parecia tão exagerado que beirava o ridículo. De volta para o estúdio, as questões inevitáveis – e incômodas – eram postas a um comentarista negro e ex-jogador: a origem, a cor.
Os franceses vitoriosos que estampam em suas peles e em seus nomes as características de quem é oprimido todos os dias, de quem o presidente recentemente recusou-se a salvar do Mar Mediterrâneo, a quem uma parte da população – que festeja a vitória – deseja fechar as fronteiras e expulsar do país. Uma festa bonita, mas hipócrita?
Dos 23 jogadores, 15 são filhos de estrangeiros e dois não nasceram na França. Com exceção de Hugo Lloris, cujo pai é de origem espanhola, e Aréola, cujos pais são filipinos, 15 são de origem africana. Samuel Umtiti, que marcou o gol que levou a França para a final, eliminando a Bélgica, nasceu em Camarões. Pogba, que marcou o terceiro gol contra a Croácia, é filho de guineanos. Presnel Kimpembe, Steven N’Zonzi, Blaise Matuidi têm descendência congolesa, mas o pai do último é angolano.
A mãe de Ousmane Dembele é da Mauritânia. O pai de Thomas Lemar, da Nigéria. Djibril Sidibé e Ngolo Kante são filhos de maleses, enquanto Corentin Tolisso, de togoleses, países do oeste africano. Mesmo caso de Benjamin Mendy, cujos pais são do Senegal. Steve Mandanda nasceu na República Democrática do Congo. Adil Rami é filho de marroquinos e Nabil Fekir, de argelinos. Há ainda Lucas Hernandez, que viveu boa parte da vida na Espanha, ainda que reforce que a França é seu país, onde nasceu.
O queridinho da França, o mais novo jogador da Copa e o segundo (depois de Pelé) mais jovem da história a fazer um gol na final, Mbappe é filho de uma argelina e de um camaronês. A cada partida, quando a bola estava em seu pé, os franceses que eu via assistir o jogo vibravam mais.
Sua camisa é a que os jovens vestem, sejam brancos ou negros. O talento inegável, a rapidez que o acompanha desde criança são uma parte. “Ele é muito respeitoso, não se apresenta como filho da periferia, mas como francês que canta A Marselhesa, os códigos que se esperam de um francês”, explica Yvan Gastaut, especialista em esporte e imigração, professor na Universidade de Nice Sophia Antipolis (UNICE).
Apesar de não se apresentar como tal, ele vem de Bondy, na “banlieue” (periferia) parisiense. O transporte entre Paris e a cidade não é muito diversificado. A região é conhecida como um “lugar perigoso” e sem perspectivas sociais. Não é difícil entender porque são fortes as escolas de futebol no local, nem porque todos conhecem a família Mbappe. A mãe, ex-jogadora de handebol, e o pai, ex-jogador e treinador de futebol regional, ambos em Bondy.
Em entrevista, o camisa 10 da seleção revelou que os pais lhe falavam todos os dias de futebol em casa. Talvez seus pais vissem no esporte e no potencial do filho uma chance de um dia ele sair dali, como aconteceu. Foi para o Mônaco aos 14 anos, mas já havia sido convidado para o Real Madrid. Os pais queriam acompanhar de mais perto. Ele diz que era porque o projeto no principado era mais completo para o seu desenvolvimento.
Deu certo. No ano passado, assinou contrato com o Paris Saint-Germain. Considerado humilde, disse que sonhava, mas que teria muito trabalho para jogar um dia na seleçao (http://www.leparisien.fr/sports/je-vis-je-mange-et-je-dors-football-06-01-2017-6531510.php). Agora, depois de atingir o ápice da glória, marchando pelos Champs Elysées, diz querer mais. Um misto de preparo comunicacional e obsessão. “Vivo, como e durmo futebol”, disse ao jornal Le Parisien em janeiro de 2017.
Seus colegas de infância sonham em um dia jogar de novo com ele, em Bondy, nas periferias parisienses, verdadeiras máquinas de fazer craques. Entretanto, nem todos virarão heróis da nação ou assinarão um contrato com clube de futebol. Terão de percorrer um caminho bem diferente e mais árduo que a marcha pelos Champs Elysées. Não ganharão milhões de euros por mês. São os “banlieuesards” (periféricos) que continuarão fazendo parte do grupo mais pobre da França, um país onde ser pobre significa precisar de seis gerações para ascender ao que ganha a média da sociedade. No Brasil, são nove. Na Dinamarca, duas.
As estatísticas oficiais apontam que uma família de origem africana na França vive com aproximadamente 1200 euros por mês, menos do que um salário mínimo, próximo do limite da pobreza, de mil euros. A renda de uma família de origem francesa gira em torno de dois mil. Se forem empurrados para o tráfico de drogas e pararem na cadeia, encontrarão um meio onde um a cada cinco detentos, um é estrangeiro, maioria que vem do Magreb, o norte da África, a África branca, que fala árabe e é muçulmana. Que, dentro das prisões, é discriminada e cuja inserção social é um verdadeiro fracasso.
Ser filho da periferia é invocar essa tensão. Não é essa a imagem que a Federação Francesa de Futebol e as empresas patrocinadoras querem vender. Não é um universo que a França admira, mas que ela prefere esconder. Se no Rio de Janeiro, favela é atração para turista, pode esquecer. Trata-se de um mundo que finge-se não existir, onde há da falsificação de documentos à exploração sexual, tudo, menos direitos humanos.
Um mundo que finge-se não existir como fez Emmanuel Macron, com o navio Aquarius, repleto de migrantes africanos no Mar Mediterrâneo. O presidente francês se recusou a acolhê-lo. Seria demais esperar dos jogadores uma postura como a dos Panteras Negras, que usaram as Olimpíadas na década de 1960 para denunciar o apartheid americano?
“A seleção dificilmente se posiciona quanto à ideia de poder conduzir a políticas públicas”, observa Yvan Gastaut. Para ele, isso não é necessariamente criticável. “A FIFA e a Federação Francesa de Futebol conduzem campanhas contra o racismo. Mas não acredito que a federação possa ter um papel maior. Precisa-se utilizar o futebol na mídia, na educação, na política para transmitir a mensagem sobre a imigração”, propõe.
Macron disse aos jogadores para não se esquecerem de seus pais, nem de onde vieram. Mas não teria ele mesmo esquecido? Além de não acolher o navio com os refugiados, seu governo apresentou um projeto para endurecer as leis de asilo e imigração no país, com medidas como redução do tempo para pedido de asilo e aumento do período de “retenção administrativa” de clandestinos. Transforma em crime a passagem de um imigrante clandestino por regiões que não forem postos de fronteira.
Macron abraçou e beijou os jogadores, os recebeu no palácio presidencial. “Não é uma contradição. A França é bastante aberta e acolhedora de um lado, e excludente de outro. Macron é representante disso. Ele tenta surfar na onda da migração e seus efeitos positivos na França, com o futebol, e utilizar o racismo para o não acolhimento”, afirma Gastaut.
Para ele, que começou a estudar o futebol com a vitória de 1998, como uma forma de compreender o tempo presente da França, Macron representa o paradoxo da sociedade francesa. “Muitos que celebraram a vitória da seleção, de todos esses jogadores juntos, se mostraram partidários do fechamento das fronteiras”, observa.
Há também os que não celebram, a extrema direita que nao tem vergonha de dizê-lo, como é o de Henry de Lesquen, ou visconde de Lesquen. No Twitter, ele publicou: “imbecis que apoiam essa seleção fazem a cama do inimigo”. Em outro post, disse que a final seria entre uma equipe da Europa branca e outra da África negra, “meu coração não bate por nenhuma das duas”.

Na rede social, ele tem mais de 7 mil seguidores. Nascido no Marrocos quando ainda era uma colônia francesa (1949), ele foi vereador entre 2001 e 2014 em Versalhes, cidade onde mora a burguesia francesa, região conhecida por parlamentares conservadores, onde nas mais belas mansões, não havia sinal da bandeira francesa.
O jornal de extrema direita Rivarol questiona: “vitória da França ou da África? Vitória do patriotismo ou do cosmopolitismo, dos franceses ou dos substitutos?” Na capa de sua edição desta terça, traz a imagem de um negro com a camisa da seleção, sendo carregado por brancos, no que chama de “guerrilha urbana”.

A imagem de união de cores, o discurso repetido pelos jogadores (meus pais são estrangeiros, mas eu sou francês) não condizem com o sentimento de muita gente. Certa vez ouvi de um jovem da Córsega que, com tantos negros e árabes, a seleção havia perdido sua alma.
Na noite da vitória, numa rua de Châtelet (centro de Paris), ouvi um jovem negro reivindicar a vitória, passando por uma rua em alto e bom som: “foram os negros e os árabes”. A identidade na França é uma batalha. A coesão durante a festa soa como uma pausa. Há os que celebram com bandeiras da Argélia, do Marrocos, ex-colônias franceses, e de Portugal, refletindo seus pais e avós, reivindicando a identidade deles como sua.

O que será da imagem da França unida? “Essa é a imagem que a França mostra ao mundo. Isso é importante. Mas vai sensibilizar quem se interessa pelo futebol. Não acho que mudaria muito o racismo, a questão da integração”, diz Penélope, 22 anos.
Emmanuel, 45 anos, diz que já viu esse filme, em 1998, com a geração chamada de Black Blanc Beur (negro, branco, árabe), e isso não impediu que quatro anos depois Jean Marie Le Pen (pai de Marine Le Pen) chegasse ao segundo turno das eleições presidenciais, com 17% dos votos. No ano passado, sua filha obteve o dobro.
Emmanuel se lembra daquela época, que para ele se repetirá: “Na época, o ministro do interior disse: ‘essa Copa do Mundo abriu meus olhos, é uma França plural, há pessoas que vêm de horizontes diversos’. No momento, talvez as pessoas vão dizer que há nomes diferentes como Mbappe e Umtiti e é graças a eles que chegamos à final. Depois, vão esquecer”.
Para Yvan Gastaut, é preciso utilizar o futebol como pedagogia “para que os sinais de abertura possam ser prolongados a outros domínios, da gestão pública, da imigração, da gestão de fronteiras, das políticas de acolhimento, o que nao se conecta necessariamente com os jogadores, não originários dessa população”.
Fora do circuito onde desfilariam os jogadores, eu procurava coesão entre as pessoas. Já na segunda-feira, não encontrava muita. A impressão é de que a identidade na França é uma batalha que foi suspensa, durante a Copa. Os jogos recomeçaram.