A direita que persegue e censura pode ser censurada pela esquerda? Por Moisés Mendes

Atualizado em 8 de julho de 2022 às 12:55
Fernando Holiday
A esquerda pode censurar a direita de volta? – Foto: Reprodução

Estudantes impediram que o vereador Fernando Holiday falasse na semana passada em evento na Unicamp sobre cotas nas universidades. Sabe-se que Holiday, apesar de ser negro, é acusado de ser racista.

Holiday também integrou o MBL e liderou manifestações de censura e sabotagem a eventos culturais que exaltavam as liberdades e as diferenças, como a Queermuseu, em Porto Alegre. E atacou muito as lutas LGBTI+. E Holiday é gay. Pobre, negro, gay e reacionário.

E aí ressurge uma questão lá do tempo da ditadura: a esquerda, que tanto reclama da censura, pode censurar a direita e a extrema direita?

Vou contar uma breve história sobre esse dilema. Em 1982, Pedro Simon (MDB) e Jair Soares (Arena) disputavam o governo do Estado. Um pela oposição à ditadura e o outro pelo partido da ditadura.

Era uma eleição histórica, a primeira para governador desde o golpe de 64. Numa primavera, há exatos 40 anos.

E aconteceu em Ijuí algo parecido com o que se deu em Campinas. Ijuí era (não sei se ainda é) uma cidade onde debatiam até a temperatura da água do mate.

Os dois candidatos foram convidados para encontros com os estudantes da Fidene, que mais tarde seria a Unijuí.

Jair Soares iria falar no CEAP, o Colégio Evangélico Augusto Pestana, que cedeu o auditório. O CEAP era a melhor escola privada da região, mantida pelos luteranos liderados em Ijuí pelo pastor progressista Silvio Meincke. Um humanista exemplar.

Pois Jair Soares tentou falar. O homem deu boa noite e a vaia rolou solta. Pediu licença para continuar falando e a vaia foi ampliada. Tentou falar alto e o auditório, com umas 300 pessoas, falou mais alto ainda.

E assim foi, durante um bom tempo. Jair Soares dizia: nós iremos fazer… E a gurizada gritava: não vai fazer nada, vai embora, abaixo a ditadura.

Até que Jair e os organizadores perceberam que não daria certo e o evento foi encerrado. Ninguém conseguia ouvir nada. O candidato do partido da ditadura não completava uma frase.

O argumento dos estudantes era exatamente esse usado contra o vereador negro considerado racista e sabotador de eventos organizados por defensores das liberdades e da democracia.

Se a ditadura não deixava ninguém falar, se perseguiu, censurou a imprensa e os estudantes e os professores e cassou mandatos, o candidato dos militares também não falaria.

Foi um fracasso como debate, mas uma vitória dos estudantes de esquerda. E eu entrei de gaiato nessa história, como correspondente da Caldas Júnior.

O Correio do Povo publicou um texto de bom tamanho em que eu contava que Jair havia sido vaiado o tempo todo e não conseguira falar.

Marco Antonio Baggio, meu chefe na poderosa Central do Interior da Caldas, me telefonou:

“Temos um problema. O pessoal do Jair foi ao doutor Breno e disse que a tua matéria não conta a verdade. Que Jair falou, foi aplaudido e quase saiu ovacionado. Dissemos que nós confiamos em ti”.

O doutor Breno Caldas era o dono e o Deus da Caldas Júnior. Fui ver o que eu tinha gravado. Era uma gravação precária, com cortes, porque a maior parte do tempo foi tomado pelas vaias. Me assustei porque não tinha uma boa prova.

Mas consegui no DCE da Fidene a cópia de uma gravação feita no palco, com tudo o que havia acontecido, do início ao fim.

Mandei a fita cassete por ônibus e fiquei esperando. Um dia de agonia. Quando me ligaram, eu já sabia que não havia como contestar a gravação com o tumulto. Mas o que poderia acontecer?

Baggio me disse algo como: está tudo resolvido, teu texto contou tudo o que aconteceu.

E assim fui salvo. Os estudantes não deixaram o homem da direita falar, os homens da direita pediram a minha cabeça ao meu patrão, talvez para que eu não escrevesse mais nada na Caldas Júnior, e Jair ganhou a eleição.

Quem tentou me derrubar? Não imagino que tenha sido o próprio candidato. Deve ter sido algum assessor esforçado.

Os estudantes calaram um representante do partido da ditadura, quatro décadas atrás. E Jair Soares era reconhecidamente um moderado dentro da Arena.

Pois a mesma pergunta se reapresenta agora no episódio da Unicamp. As esquerdas também podem cassar a fala da direita identificada com a discriminação, a repressão, o ódio, a mentira e o autoritarismo?

Em determinadas circunstâncias, não necessariamente em debates públicos entre candidatos, que são regulados pela legislação eleitoral, é claro que podem. Como gesto político extremo e legítimo, em resposta a quem atenta contra as falas e as liberdades dos outros.

Foi o que aconteceu naquela primavera de 1982, quando a ditadura já definhava. Foi um protesto contra a ditadura, que só caiu porque foi abalada pela resistência decisiva e barulhenta dos estudantes.

O usurpador das liberdades e da democracia não pode querer desfrutar da democracia que ele mesmo violenta, maltrata e desrespeita, para atacar quem tenta amordaçar. Que fale para a sua turma.

É excesso de republicanismo chamar fascistas para que exerçam seu fascismo num debate organizado por democratas. Não pode. De jeito nenhum.

Publicado originalmente no Blog do Moisés Mendes

Moisés Mendes
Moisés Mendes é jornalista em Porto Alegre, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim) - https://www.blogdomoisesmendes.com.br/