A divergência dos projetos ‘anticrime’ de Alexandre de Moraes e Moro. Por Igor Carvalho

Atualizado em 9 de maio de 2019 às 10:03
O ministro do STF, Alexandre de Moraes e o superministro Sergio Moro

PUBLICADO NO BRASIL DE FATO

POR IGOR CARVALHO

No dia 20 de março deste ano, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), teceu críticas duras ao ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro. Entre as considerações, o mandatário da Casa afirmou que o pacote “anticrime” de Moro, principal bandeira de seu ministério, era uma imitação do projeto apresentado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.

“O projeto é importante. Aliás, ele tá copiando o projeto do ministro Alexandre de Moraes. Copia e cola. Então, não tem nenhuma novidade. Poucas novidades no projeto dele. Nós vamos apensar um ao outro. O projeto prioritário é o do ministro Alexandre de Moraes”, afirmou Maia.

Na semana seguinte, Maia e Moro se encontraram na casa do presidente da Câmara e fecharam acordo para agilizar a tramitação do projeto na Casa. Para tanto, o deputado se comprometeu em enviar o texto para apreciação simultânea no Senado.

Nos bastidores do Congresso, a proposta do ministro do STF ganhou força nos últimos meses e tem sido tratada por alguns setores como “plano B”, por ser supostamente mais efetiva e “menos radical” que o pacote de Moro – que poderia ter mais dificuldade de tramitação.

A convite do Brasil de Fato, dois juristas analisaram pontos específicos dos dois projetos. Os temas selecionados – “Prisão em segunda instância”, “Milícias” e “Progressão de pena” – foram escolhidos devido à dimensão que ganharam no debate público recentemente. Para Fernando Hideo Lacerda, advogado criminalista e professor de Direito Penal na Escola Paulista de Direito, e Patrick Mariano, mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB), os projetos não são tão similares como apontou Rodrigo Maia.

Prisão em segunda instância

O primeiro item conseguiu a atenção da opinião pública por conta de uma decisão do ministro Marco Aurélio Mello, no dia 19 de dezembro, determinando a soltura de 169 mil presos que estão encarcerados sem o trânsito em julgado, com possibilidade de recursos em instâncias superiores. A medida foi revertida pelo ministro Dias Toffoli apenas cinco horas depois.

A decisão de Mello jogou luz no descaso do sistema judiciário, que mantém 23,9% da população carcerária brasileira trancafiada sem que sua culpa esteja determinada pela Justiça. Hideo e Mariano apontam que Moraes, em seu projeto, não propõe qualquer alteração na atual legislação. Para Moro, é preciso modificar.

“Ele [Moro] tenta legislar na esfera das leis federais tema sobre o qual não existem dúvidas quanto a clareza textual do mandamento constitucional de que todos são inocentes até o trânsito em julgado da sentença condenatória. A proposta do ponto de vista técnico é uma aberração. Do ponto de vista político, Moro tem uma única intenção que é a de pressionar os ministros do STF no julgamento das Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade (ADCs) que aguardam julgamento pela Corte”, afirma Mariano.

O jurista cita as ADCs 43, 44 e 45, que o STF deveria ter analisado no dia 10 de abril, mas que o ministro Toffoli retirou da agenda da Corte, após pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O processo analisará o mérito da decisão do STF de fevereiro de 2016, que autorizou a prisão antes do trânsito em julgado, já a partir da segunda instância.

Milicianos

No dia 14 de março deste ano, completou um ano do brutal homicídio da vereadora Marielle Franco (PSOL). Dois dias antes, a Polícia Civil anunciou a prisão do policial militar reformado Ronnie Lessa e o ex-policial militar Élcio Vieira Queiroz, suspeitos do assassinato. A investigação liga os dois agentes às milícias que atuam no estado.

Ronnie Lessa, acusado de ser o atirador, foi preso em sua casa, que fica dentro do Condomínio Vivendas da Barra, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, o mesmo em que o presidente Jair Bolsonaro mantém sua residência. De acordo com Giniton Lages, delegado responsável pela investigação, o filho do presidente teria namorado a filha do policial militar.

Outros nomes que foram analisados entre os suspeitos de assassinarem Marielle Franco mantiveram relação com a família Bolsonaro. Paulo Alves Pereira, major da PM-RJ, apontado como chefe da milícia de Muzema, localizada no bairro de Itanhangá – local escolhido por Ronnie Lessa e Élcio Queiroz para partir com o carro para executar a vereadora – foi homenageado pelo senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), vereador na época, com a medalha Tiradentes, mais alta honraria do Legislativo do Rio de Janeiro, em 2003.

O filho de Bolsonaro homenageou, ainda, outro miliciano. Em 2005, Adriano Magalhães Nóbrega, agente do batalhão de Operações Especiais (Bope), recebeu a medalha Tiradentes. Ele seria o chefe dos milicianos que atuam em Rio das Pedras.

É justamente em Rio das Pedras que foi se esconder Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro, depois que o Controle de Atividades Financeiras revelou que, em 2018, sua conta movimentou R$ 7 milhões, valor incompatível com seus vencimentos. Os depósitos eram oriundos de outros funcionários do gabinete do então vereador.

Com as seguidas “coincidências”, a relação entre o clã Bolsonaro e os milicianos dominou o noticiário. Em seus projetos, escritos antes que o presidente e se filho fossem acusados de estarem ligados às milícias, Moro e Moraes abordam o tema.

Com uma lupa apontando para o tópico que trata dos milicianos, Hideo fez uma análise técnica das propostas.

“Moro limita-se a incluir as milícias como exemplo de organização criminosa. Moraes detalha mais o tema, criminalizando a realização de ‘atos preparatórios’ para constituição de milícias, fixa competência da Polícia Federal e Justiça Federal para persecução e cria varas colegiadas para julgamento desses crimes.”

“Do ponto de vista legal, eu tenho sérias críticas a tipificar o que seria uma milícia por que ela é muito mais um termo jornalístico e da política para designar a atuação de grupos que praticam crimes”, explica Mariano.

Sobre o projeto de Moro, o jurista afirma que o texto propõe novidade. “Uma Lei de 2012, impulsionada pela ação de grupos de extermínios no Nordeste criou o art.288-A que define o que seria uma milícia e aplica pena. Embora bem intencionados os seus autores, a tipificação era desnecessária porque já havia a época legislação suficiente para tratar da questão. Faltava vontade política até porque muitos dos integrantes desses grupos são servidores públicos. Feito isso, a proposta de Moro não trata de nenhuma alteração no art.288-A.”

Sobre a proposta de Moraes, Mariano afirma: “Ele quer punir os chamados atos preparatórios do crime de milícia e estabelecer que esses crimes devam ser apurados pela Polícia Federal. Veja, punir atos preparatórios é uma excrescência para a ciência penal. Isso vem com outra aberração legal que foi a introdução no sistema de justiça da Lei do Terrorismo. Essa é a diferença entre um e outro. Um trata do tema, de forma errada na minha opinião, outro não trata.”

Progressão de Pena

A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou, no dia 23 de abril deste ano, que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenha sua pena reduzida de 12 anos e um mês para 8 anos, 10 meses e 20 dias. Dessa forma, o petista passou a ter direito a progressão de pena para o regime semiaberto, que lhe permitiria trabalhar durante o dia, retornando ao cárcere à noite.

No último 3 de maio, Lula anunciou, através de sua Defesa, que irá solicitar à Justiça a progressão de pena. A decisão foi tomada após reunião com seus advogados na superintendência da Polícia Federal em Curitiba, Paraná, onde está preso desde abril de 2018.

“No projeto do ministro Alexandre de Moraes, há aumento dos prazos mínimos para progressão de regime, fixado em lei e apenas nos casos de crime hediondo e equipados. No projeto do Ministro Sérgio Moro, há previsão genérica e arbitrária de que o juiz poderia fixar prazo mínimo de cumprimento da pena em regime fechado”, analisa Hideo. E acrescenta: “O projeto do ministro Sérgio Moro é mais abrangente, pois pretende uma revolução no sistema penal brasileiro, enquanto a proposta do ministro Alexandre de Moraes limita-se a alterações mais pontuais no ordenamento jurídico-penal”.

Para o criminalista, no entanto, os dois projetos são autoritários, porque colocam a punição, o aumento de penas e o encarceramento em  massa como solução para a criminalidade no país. Além disso, acredita que “enquanto as questões de política criminal forem tratadas exclusivamente com base na repressão policial e judicial, seguiremos com o fracasso na segurança pública. É preciso entender que a violência estatal não é um remédio eficaz para a criminalidade. A prevalecer essa mentalidade autoritária, em breve teremos a maior população carcerária e os piores índices de violência urbana no mundo”.

Mariano também teme um agravamento na já precária situação penitenciária brasileira. “As duas propostas são bem nefastas neste quesito, porque endurecem as condições iniciais de cumprimento da pena, bem como a progressão de regime para certos crimes. Não há sentido científico, técnico, estrutural nenhum para essas mudanças a não ser a opção clara pelo populismo penal”, alerta.

“A Lei de Execuções Penais trabalha com a lógica da reinserção social da pessoa presa, os projetos ignoram por completo esse norte elementar da execução penal. Assim, se reforçam crises no sistema penitenciário e se estocam seres humanos em depósitos sem qualquer dignidade por tempo indeterminado. As propostas desconsideram a realidade do cárcere brasileiro e, ao invés desenvolver ações como o mutirão carcerário e cuidar para que a pessoa presa não passe tempo além do que a lei determina na prisão (grande parte da população carcerária), agravam, irresponsavelmente, essa realidade”, encerra o jurista.