Médico-político, bem conectado com o poder, recebedor de farto financiamento público, defensor radical da Guerra Contra as Drogas, Laranjeira é movido pela sensação de mandar nos outros.
O artigo abaixo, do jornalista Denis Russo Burgierman, foi publicado originalmente no site da Superinteressante.
Todo mundo tem a sua droga. A da minha mãe, por exemplo, é a endorfina, nome que é uma abreviação de “endo-morfina”, ou “morfina interior”.
A endorfina é um opióide, ou seja, uma droga da mesma classe do ópio e da heroína. Os opióides agem como desentupidores nas sinapses do cérebro: eles abrem os caminhos pelos quais a dopamina flui.
E a dopamina é a mãe de todas as recompensas: aquela sensação gostosa, aconchegante, de bem estar, que chamamos de prazer.
É a dopamina que nos dá aquele gosto doce que acaba formando hábitos. É ela, também, que, quando algo sai do controle, causa a dependência.
Minha mãe busca a dopamina dela de maneira saudável, correndo pelas ruas e pelos parques de São Paulo, subindo em pódios com medalhas douradas no pescoço – exercício físico faz o corpo produzir endorfina.
Há quem busque o prazer em outras coisas. Glutões produzem dopamina quando se empanturram. Yogues produzem quando respiram profundamente.
Jogadores vão em busca dela na emoção das apostas do bingo ou do carteado. Futebol, chope, sexo, novela, dança, festa, trabalho, cinema – tudo aquilo que tem o potencial de dar prazer pode estimular a produção de dopamina. Inclusive drogas, como álcool, tabaco, nicotina, açúcar, maconha, cocaína, heroína.
Ontem participei da entrevista com o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, no programa Roda Viva, da TV Cultura. Laranjeira é um médico-político, bem conectado com o poder, recebedor de farto financiamento público, com larga experiência em dependência, defensor radical da Guerra Contra as Drogas.
Colegas de Laranjeira no mundo acadêmico já haviam me advertido que a droga dele é o poder. É a sensação de mandar nos outros aquilo que ativa seu sistema dopamínico.
A entrevista foi bem frustrante para mim. Laranjeira tomou a palavra e falou sem parar, sem dar atenção às perguntas que lhe faziam.
Citou uma série de dados inventados, como a informação de que todos os países desenvolvidos estão abandonando as políticas de redução de danos – basicamente o contrário da realidade, já que há uma clara tendência pela adoção global da filosofia da redução de danos, até mesmo nos Estados Unidos, onde pelo menos o discurso já mudou.
Num dos intervalos do programa, uma das entrevistadoras, a especialista em segurança pública Ilona Szabo, deu uma bronca no entrevistado fora do ar, criticando a forma irresponsável como ele manipulava os dados.
Laranjeira virou agressivamente sua cadeira para ela, aumentou o volume da voz, e brandiu o argumento da autoridade: “Cresça e apareça, menina. Quem é você? Eu tenho 30 anos de experiência nisso”.
Ilona respondeu tranquila: “Eu trabalho com gente que tem o dobro de sua idade e que teve a humildade de mudar de ideia. Você pode mudar também.”
Aos 34 anos, Ilona é coordenadora do secretariado da Comissão Global de Políticas sobre Drogas, o órgão internacional cujo presidente é Fernando Henrique Cardoso (81 anos) e que tem entre seus membros gente como o ex-presidente do banco central americano Paul Volcker (85) e o ex-secretário de Estado dos EUA George Schultz (92), braços direito e esquerdo do ex-presidente Ronald Reagan, principal comandante da Guerra Contra as Drogas na década de 80.
O objetivo da Comissão é acabar com a guerra e buscar soluções mais pacíficas e racionais para evitar que nosso apetite natural por dopamina nos destrua.
Nos anos 1980 e 90, FHC, Volcker, Schultz e Reagan eram generais da Guerra Contra as Drogas. Laranjeira, naquele tempo, era um soldado raso, talvez um jovem oficial dedicado a dar alguma sustentação científica para a ofensiva militar.
Hoje os generais não apenas estão cansados de lutar mas pedem desculpas pelos erros do passado: eles reconhecem que a guerra foi um equívoco.
Mas o soldado Laranjeira quer continuar lutando. Afinal, ele não está preocupado em saber se a guerra dá certo ou não. O que ele quer é poder – e, consequentemente, dopamina.
No fundo, ele sabe que a guerra é inútil, mas sabe também que, se ela acabar, ele perde poder. Ele é dependente de poder.