
Por Jeferson Miola, publicado em seu blog
Apesar da vitória da candidata Jeanette Jara/PC no primeiro turno da eleição presidencial do Chile, no conjunto o resultado aponta para um contexto complexo e desafiador não só para as forças progressistas e de esquerda que apoiam o governo Gabriel Boric, mas para a sobrevivência da democracia chilena.
Jara venceu com 26,85% – apenas 1,02% acima do desempenho de Boric no primeiro turno da eleição de 2021, quando ele obteve 25,83% dos votos com uma “chapa pura” da Frente Ampla.
Naquela eleição, a Concertación [DC, PS, PR e outros] concorreu com candidatura própria e apoiou Boric só no segundo turno, depois de obter 11,6% dos votos com Yasna Provoste, mas neste ano estes partidos integram a frente eleitoral da Unidade pelo Chile, liderada por Jara.
Se a inclusão da Concertación na aliança eleitoral do campo governista nesta eleição tivesse se traduzido automaticamente em aumento de votação da candidata governista em relação à eleição anterior, Jara teria alcançado quase 40% dos votos.
Aparentemente, porém, esta aliança teve o efeito benigno de compensar a perda de base social e eleitoral da Administração Boric, que tem uma aprovação baixa, ao redor de 30%.
Outra fonte de preocupação para Jara é o desempenho de apenas 1,2% do candidato de centro-esquerda Enriquez-Ominami, que na eleição de 2021 obteve 7,6% dos votos, um eleitorado que majoritariamente votou em Boric no segundo turno, e foi fundamental para a derrota de José Antonio Kast.
A participação eleitoral foi bastante elevada, de 85,3%, com 13.452.724 eleitores votando devido à obrigatoriedade do voto – quase o dobro dos 7.114.800 eleitores que votaram em 2021.
Este elevado quórum eleitoral também será um complicador para Jara, que terá um universo menor de eleitores indefinidos para atrair no segundo turno, diferentemente do acontecido com Boric na eleição anterior.
Para o campo da ultradireita fascista e direita extremada chilenas, o primeiro turno equivaleu a uma espécie de primária eleitoral para definir o representante desse bloco para disputar a Presidência do Chile com chances reais de vitória.
Os votos atribuídos aos candidatos Kast [23,9%], Johannes Kaiser [13,9%] e Evelyn Mattei [12,5%], que defendem abertamente o pinochetismo e pautas reacionárias, ultraliberais e conservadoras, totalizaram 50,3%.
A fragmentação eleitoral não significa incompatibilidade ideológica entre esses candidatos, unidos na mesma visão reacionária, autoritária e conservadora de país.

O candidato demagogo Franco Parisi, do Partido do Povo, que catalisou o sentimento difuso de insatisfação social, mas sem vinculação ideológica orgânica com o extremismo, obteve surpreendentes 19,7% dos votos, 54% a mais que em 2021.
É preciso analisar em profundidade o que se afigura como um revés histórico relevante para a Frente Ampla, esquerda emergente do Chile que surgiu em alternativa à polarização entre a direita [pinochetista ou não] e a Concertación.
A gênese dessa situação eleitoral desfavorável para a Frente Ampla já podia ser percebida logo nos meses iniciais do governo Boric. A derrota por 62% a 38% da proposta de nova Constituição pós-pinochetista em 4 de setembro de 2022, apenas seis meses depois da posse de Boric, foi um sinal relevante da mudança de ventos.
O sentimento de urgência social da rebelião de 2019, que catapultou a luta anti-neoliberal no berço do neoliberalismo e impulsionou a vitória do processo constituinte e, à continuação, a eleição de Boric à presidência do Chile, foi frustrado de modo acelerado ante as escolhas do governo recém empossado, que não sinalizou claramente com uma perspectiva antineoliberal para conseguir atender as aspirações históricas legítimas do povo chileno.
No dia do segundo turno em 2021, em 19 de dezembro, algumas horas antes do escrutínio, e ciente da semeadura que estava fazendo para catalisar o sentimento reacionário e conservador de enormes parcelas da sociedade chilena, José Antonio Kast declarou que “se ganho, ganho; e se perco, também ganho”.
A colheita poderá ser feita em 14 de dezembro deste ano, no segundo turno, no que poderá ser um enorme desastre para a democracia do Chile, da América do Sul e do mundo.
Kast é filho de oficial do exército nazista e integrante de uma família que colaborou com a ditadura sanguinária de Augusto Pinochet.
O pai de José Kast e seus tios são acusados de cumplicidade com o desaparecimento de pelo menos 70 pessoas, entre camponeses, comerciantes, professores e estudantes, na comunidade de Paine, durante a ditadura.
A família Kast apoiou logisticamente o regime de terror com mantimentos para os militares e carabineiros e com o empréstimo de veículos para transporte de perseguidos pelo regime. Trabalhadores da empresa de carne seca Bavária, de propriedade da família Kast, também estão entre as vítimas de tortura, de mortes e desaparecimentos.
Pelos serviços prestados, a família foi retribuída com influência política durante a ditadura pinochetista. Miguel Kast, irmão dele, foi ministro de Planejamento, ministro do Trabalho, presidente do Banco Central e consultor da DINA – o temível serviço de inteligência chileno.
A eleição presidencial no Chile se desenrola sob o espectro do ditador Augusto Pinochet. A vitória de Jeannette Jara é um imperativo para a democracia chilena, e também para a resistência continental ao facismo.