A onda de suicídios na Espanha por causa dos despejos

Atualizado em 19 de fevereiro de 2013 às 17:33

A crise está golpeando os espanhóis no que há de mais essencial: a moradia.

casa

De Granada, Espanha

Francisco Bretón tomou o seu café da manhã, beijou a esposa, levou a filha à escola e se atirou do quarto andar do edifício onde morava. Apesar de lembrar uma letra de Chico Buarque, esses fatos são reais. Aconteceram em Córdoba, na Espanha.

Embora já tivesse perdido a casa que havia construído por não poder pagar as prestações de dois créditos hipotecários assumidos, o pedreiro desempregado de 36 anos continuava com uma dívida de mais de 24 mil euros, algo em torno de 60 mil reais. Ele tentara suicidar-se antes, na calçada do banco credor. Recuperou-se. Passados alguns meses, porém, tomou a decisão mais drástica. E a morte antecipada foi o seu último refúgio.

Seu caso engrossa uma perturbadora lista que mostra a cara mais brutal da crise econômica que assola a Espanha. As pessoas preferem a morte ao constrangimento e a incerteza de perderem seus imóveis.

O quadro é tão preocupante que foi capaz de produzir uma rara unanimidade entre os deputados espanhóis. Em peso, eles aprovaram um projeto de lei de iniciativa popular, em caráter de urgência, para reformar vários pontos da sua legislação hipotecária (do início do século passado).

Essa surpreendente unanimidade custou a vida de um casal de idosos em Mallorca. Argumenta-se que este duplo suicídio colocou contra a parede os deputados do Partido Popular, dissolvendo sua resistência anunciada à aprovação da tramitação do projeto de lei.

É importante dizer que a proporção de suicídios por despejo é reduzida. Porém, quando ocorrem, causam repercussão imediata na mídia, e a morbidez da reação faz tremer as instituições.

Em muitos casos as comitivas oficiais que executam os despejos se deparam com os cadáveres ao entrarem no imóvel. Às vezes, os suicídios ocorrem no momento em que a comitiva bate à porta.

A falta de meios de proteção social às famílias afetadas fez surgir um movimento que oferece auxílio de várias maneiras. Em certas circunstâncias, os ativistas até enfrentam a polícia, impedindo a realização do despejo.

A situação chegou ao ponto de fazer com que o sindicato de policiais se dispusesse a oferecer assistência jurídica para os agentes que se negassem a acompanhar as comitivas judiciais, e provocou uma manifestação pública do Poder Judiciário, denunciando abusos na cobrança das dívidas e exigindo mudança na legislação.

Entre outros pontos, o projeto de lei propõe que o débito seja encerrado com a entrega do imóvel, com efeito retroativo. Ou seja, beneficiaria também as pessoas já despejadas e que, no entanto, continuam com dívidas estratosféricas junto aos bancos.

Os bancos, por outro lado, alegam que não se podem mudar as regras do jogo com a partida em andamento. Os termos dessa nova lei afetariam diretamente a segurança jurídica. Em bom português: mudar outras regras de outras partidas em andamento causaria um efeito cascata e traria o caos ao sistema jurídico. Isso, segundo as instituições financeiras, colocaria em risco a própria sobrevivência dos bancos.

Protesto em Valência contra os despejos
Protesto em Valência contra os despejos

Por essa razão é que regras retroativas dificilmente serão aprovadas. Isso não impede, entretanto, que certas falhas na legislação sejam corrigidas, já que o endividamento acima das possibilidades de pagamento das pessoas configura uma espécie de “culpa compartilhada” com o credor.

Ao governo cabe agora a tarefa de realizar uma discussão racional e sóbria sobre o tema para formular uma lei que dê equilíbrio ao sistema. Em todo caso, se há alguma certeza diante da evolução desse quadro, é que esta tramitação vai acontecer sobre forte pressão social.

Por outro lado, a opção de muitas pessoas de tirar a própria vida mostra a difícil adaptação a um modelo econômico que pressupõe o desmonte do Estado de Bem-Estar Social. Pouco a pouco os espanhóis sentem na pele a falta de benefícios incorporados ao cotidiano, até que a crise os golpeia no que há de mais essencial: a moradia.

É certo que suicídios em períodos de crise econômica não são uma novidade. A Grande Depressão iniciada em 1929 teve sua cota. No caso espanhol, no entanto, não são grandes empresários ou banqueiros inacessíveis que pulam no vazio ou se enforcam na sala de suas casas. É o vizinho com quem já se tomou um café, aquela senhora que se vê diariamente comprando frutas, ou então o sujeito com quem se assiste ao jogo do Real Madrid aos domingos.

No fim das contas, a realidade dos suicídios na Espanha exige uma reflexão que vai além do aspecto meramente financeiro ou jurídico. É possível que a resposta do governo, apesar de efetiva, não passe de um paliativo.

O filósofo romano Sêneca – que nasceu em Córdoba – dizia que “na vida, como no teatro, o que importa não é a duração da peça, mas a qualidade da interpretação”. E recomendava, quando fosse o caso, que a ela se desse um fim digno.

A razão de se encontrar na morte a dignidade negada na vida não repousa nos corredores de um Parlamento, mas sim nos recantos do coração humano. O pedreiro Francisco Bretón é prova disso.