Por Luis Felipe Miguel
Na Folha de ontem, Juliano Spyer, que é antropólogo, ao que parece especializado no estudo de fiéis evangélicos, assina um artigo intitulado “É a família, estúpido!”
É a velha questão da incapacidade da esquerda dialogar com o eleitorado evangélico. Mais para o final do texto, um conjunto de observações, atribuído ao pastor Henrique Vieira, resume o argumento:
“A esquerda abdicou de falar de família por entendê-la apenas como reprodutora do patriarcado. Também abdicou de falar do amor porque isso ‘não é racional’ (além de ser ‘cafona’); e abdicou de falar de vida porque defender a vida seria ser contra o aborto. Henrique defende que progressistas guardem suas cartilhas e palavras de ordem, e dialoguem com evangélicos usando como idioma a defesa da vida, do amor e da família”.
Trata-se de uma distorção interessada.
Como a esquerda não fala de “vida”? A defesa da vida das mulheres, da população negra, dos povos indígenas, das pessoas LGBT, dos miseráveis e dos despossuídos, tudo isto está no centro do discurso da esquerda. (A posição antiarmamentista também serviria de exemplo.)
A esquerda não fala de “amor”? Mas o tema piegas do “amor contra o ódio” é repetido ad nauseam.
E é por reafirmar que qualquer maneira de amor vale a pena que a esquerda expande sua defesa da “família” para além do formato convencional.
O que se está querendo dizer, com essa crítica falsa, é que a esquerda deveria assumir o discurso religioso conservador sobre família, amor e vida, abdicando de tensioná-lo.
Abrindo mão, em suma, do combate a múltiplas formas de dominação e opressão.
Sem discutir o cerceamento da autonomia das mulheres, a negação dos direitos das crianças, as agressões às pessoas LGBT, os ataques a religiões de matriz africana…
E chegando a episódios lamentáveis, como o desfile de políticos ajoelhados pedindo apoio divino para suas campanhas ou a declaração de nosso candidato presidencial, ontem, colocando a Bíblia em pé de igualdade com a Constituição.
É o de sempre: nunca falta um spin doctor para dizer que o caminho para a esquerda é deixar de ser de esquerda.
Texto publicado originalmente no perfil do facebook Luis Felipe Miguel.