Tempos atrás, logo depois de ter escrito, no Estado de S. Paulo e na internet, um artigo sobre a inevitável explosão do mercado de criptomoedas, recebi de um leitor algumas perguntas sobre o tema.
Vale a pena repeti-las, agora que essas moedas de ficção estão efetivamente derretendo nas mãos de milhões de aplicadores, no exterior e no Brasil, incluindo alguns jogadores do Palmeiras e de outros times que perderam de uma tacada todo o seu dinheiro. Vejamos as perguntas e minhas respostas.
Professor José Carlos de Assis, o senhor continua tendo certeza de que as criptomoedas vão desaparecer?
Resposta: O mercado das criptomoedas, bitcoin à frente, vai acabar virando pó. Um diretor do FED, o banco central norte-americano, disse recentemente que comprar criptomoeda é como colecionar figurinhas. Quando falei sobre isso mais de um ano atrás, colegas economistas reagiram com ceticismo, convencidos de que a alta tecnologia por trás dessas moedas anônimas de bandidos, sem garantia dos Estados, valiam porque a discrição em torno delas as protegia de quebras. Enganavam-se. O máximo que poderiam especular era reconhecer que esse mercado, altamente especulativo, comportava riscos, porém o desastre que eu antevia era exagerado.
Qual é a real origem das criptomoedas?
Trata-se de uma pirâmide tecnológica para enganar gente ingênua que quer ganhar muito dinheiro com aplicações a juros acima das taxas do mercado. Na prática, são moedas especialmente de vigaristas, de traficantes de drogas e de mulheres, de negociantes de órgãos humanos retirados de miseráveis que não têm outra coisa para vender, de contrabandistas e fraudadores de impostos. São as moedas preferenciais dos paraísos fiscais, amarrados ao dinheiro que atraem para si e se desfaz com ele. Moedas do capital ultraespeculativo.
Professor, como se tem sustentado há tanto tempo o mercado de criptomoedas, se o que se negocia nele não tem valor real? E como tanta gente ganhou tanto dinheiro nele?
Quem ganha dinheiro nele é quem aplica primeiro e sai primeiro. É a lógica das pirâmide financeiras, golpe que se aplicava desde o início do século XIX. Mas a cereja do bolo hoje é a tecnologia. Aí aparece também uma conexão entre economia e moralidade. O valor da cryptomoeda está no fato de que ela esconde crimes sob a matemática. O capitalismo neoliberal é um sistema quase inteiramente desregulado, mas há muita gente que ganha dinheiro nele por operações ilegais, não declara renda e nem quer pagar impostos, mas quer desesperadamente escondê-lo.
Essa faculdade de não pagar impostos e não se deixar rastrear pela polícia é uma implicação da evolução tecnológica. Um especialista em bitcoin lhe explicará detidamente porque o sistema é blindado contra falhas. Objetivamente, ele é quase 100% isso. O que ele não consegue é entrar na mente das pessoas e convencê-las de que o bitcoin nunca quebrará. Na realidade, todos que aplicam nessas moedas virtuais intuem que são vulneráveis, mas apostam que alguém quebra primeiro e ele sai a tempo de evitar a própria quebra.
A quebra se caracteriza quando não há mais demanda pela moeda. Por se tratar de um mercado subjetivo, qualquer fato real ou imaginário pode desencadear o processo de queda. Basta que o último a sair dele não seja substituído por alguém que entra.
Não foi por conta da virtual quebra da Evergrande que o mercado de criptomoedas esteve quase indo para o pó na China. Aqui, um sinal de alerta foi dado quando um especulador foi pego em Cabo Frio com milhões de reais em várias moedas, inclusive criptomoedas. A Polícia Federal já estava no rastro dele e deu o bote. Quando se fizeram as contas, verificou-se que o especulador milionário, conhecido como Faraó montara uma fraude de R$ 38 bilhões, uma pirâmide gigantesca. A Justiça agiu, o dinheiro foi bloqueado. Faraó parou de pagar credores e está preso.
Quando disse que essa fraude era suficiente para fazer o mercado de moedas virtuais desabar, um economista cético me contradisse: não, você está enganado. O mercado de bitcoin não é tão grande assim. Essa quantia não tinha escala para abalar o conjunto. Respondi com a metáfora conhecida da Teoria do Caos: um borboleta que bate ases na Argentina provoca um tufão na Califórnia. Em tempos de mudanças climáticas dramáticas, essa metáfora, aplicável ao tempo, é perfeita para moedas virtuais.
Mas os céticos insistem que já houve casos em que flutuações fortes em um ou dois dias nos valores de moedas virtuais não resultaram em quebradeira geral. É verdade. Entretanto, é preciso observar o ambiente. Estamos enfrentando situações de diferentes crises simultâneas no mundo – ambientais, energéticas, hídricas, de segurança, de guerra -, às quais, no Brasil, se superpõe a crise inflacionária, o aumento dos juros e a escalada do custo de vida.
Além disso, quando acontece um início de tremor no mercado das crypto, seus manipuladores debaixo das cortinas entram rapidamente em ação para protegê-lo através de campanhas de televisão. Foi o que aconteceu depois do escândalo de Faraó. Ninguém menos que o jornalista Pedro Bial foi contratado para apresentar na Globo anúncios de que o melhor investimento do mundo eram criptomoedas. Era uma manobra clara para substituir os que estavam saindo do mercado para atrair os que deveriam entrar.
Professor, o Brasil fica mais vulnerável nisso tudo?
Com Bolsonaro no poder era muito pior. Pois é através da intervenção institucional nos mercados que governos podem debelar crises financeiras e econômicas agudas. O governo de Bolsonaro era indiferente às crises em curso e contribuía para agravá-las com seus arroubos neoliberais delirantes. Mas como uma cryptomoeda não tem uma garantia real, o mercado dela pode afundar independentemente da credibilidade dos governos.
Quando há contaminação do mercado financeiro normal, de dezenas de trilhões de dólares, pelo de criptomoedas, é mais do que uma tempestade perfeita. É o caos absoluto. Uma tempestade perfeita passa e tudo volta ao normal. Já uma crise aguda de interação entre mercados objetivos e subjetivos se estende indefinidamente no tempo. Os mercados virtuais são instantâneos. Os mercados reais dependem de deslocamentos no espaço físico. Reconciliá-los a curto e médio prazo é quase impossível. Além disso, a esfera monetária especulativa é gigantesca, da ordem de centenas de trilhões de dólares, em relação à economia real dos bens e serviços físicos.
Para reconciliar a esfera especulativa com a esfera real, impedindo a inflação, seria preciso uma convergência: ou o mercado da economia real se expande rapidamente, na forma de um crescimento acelerado do PIB e da renda real, ou a esfera especulativa se contrai. A primeira alternativa, pelas circunstâncias atuais, está descartada. O BC, claro, pode tentar promover uma contração suave da esfera especulativa. Para isso, seu único instrumento é aumentar a taxa de juros. O resultado será mais contração da economia real e mais queda da demanda, mais recessão.
Professor Assis, o que pode ser feito para evitar o desastre total?
A única esperança, sobretudo para a economia ocidental, é que a China, a economia comunista, intervenha para regular seu mercado imobiliário, fonte da crise na órbita real, e salve também o capitalismo especulativo do Ocidente. É uma ilusão. A China só pode fazer isso contra seus próprios interesses. É que, do outro lado, o FED, banco central americano, injetou muito dinheiro no mercado para salvar o sistema produtivo e agora está retirando. Essa gangorra implica eventual desvalorização do dólar e de reservas chinesas (3,2 trilhões de dólares) aplicadas em sua maioria no mercado americano. A única convergência possível é a esfera financeira especulativa virar pó.
A imaginação de Shakespeare atribuiu a Ricardo III a seguinte sequência para justificar a perda de sua coroa: Por causa de um prego perdi a ferradura; por causa da ferradura perdi o cavalo; por causa do cavalo perdi a batalha; por causa da batalha perdi a guerra; por causa da guerra, perdi o Reino. E tudo por causa de um prego.
Bitcoin, moeda subjetiva, e ativos objetivos contaminados pela queda da economia, são os pregos da derrota do sistema financeiro especulativo ocidental na era das comunicações e da internet. É a derrota do dinheiro do ócio e do crime, que arrasta consigo também a economia real. Uma derrota escatológica, um Armagedon financeiro, que o Papa Francisco, evocando na pós-modernidade um conceito anacrônico da Idade Média, associa à ação direta do Diabo ocidental, diante da indiferença evangélica de um Buda chinês.