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A festa anti-Thatcher em Trafalgar Square: meu relato

As comemorações não são pela morte de uma senhora — mas pelo que ela representa.

Trafalgar Square na festa anti-Thatcher

 

DE TRAFALGAR SQUARE

“Maggie, Maggie, Maggie”, puxavam uns. “Dead, dead, dead”, respondiam outros.

Sob chuva, centenas de pessoas – 500, no cálculo da BBC, ou 3 000, segundo o Guardian – festejaram na noite de ontem a morte de Margaret Thatcher, a Maggie, em Trafalgar Square, a maravilhosa praça londrina dominada pela National Gallery e pela estátua de Nelson.

Eu estava lá, acompanhado de Erika Nakamura, louca para fotografar a festa.

Dezenas de policiais estavam lá para zelar para que tudo fosse pacífico, mas nem era necessário.

Tudo que as pessoas queriam era festejar a morte de Thatcher.

Ali na praça estava representada a working class, essencialmente – ou os 99%, para usar a nomenclatura moderna consagrada pelo movimento Ocupe Wall St.

Você via pelos dentes maltratados da maioria quanto degringolou o estado de bem estar social pós-Thatcher.

Os manifestantes vibraram quando, pouco depois das 18 horas, chegaram representantes dos mineiros – classe que foi simplesmente devastada na era Thatcher.

Eles carregavam um estandarte no qual se lia: “Nossa luta é pelo direito de trabalhar”.

Os mineiros esperaram pacientemente a morte de Thatcher. E reagiram com o humor inglês.

O célebre líder sindical Artur Scargill – o equivalente a Lula entre os metalúrgicos – publicou uma foto que dizia o seguinte: “Ela está morta. Eu estou vivo.”

Um outro mineiro abriu uma garrafa do uísque predileto de Thatcher – ela bebia bem – que guardou durante vinte anos especialmente para a ocasião. E tomou toda ela.

É curioso. Ficou em mim a forte impressão de que a elite política e jornalística inglesa não imaginava quanto Margaret Thatcher era detestada.

O tom na mídia, logo que as festas se multiplicaram, foi de surpresa.

Ninguém imaginou que os manifestantes fossem capazes, por exemplo, de levar uma música ao primeiro lugar entre as mais vendidas comprando-a alucinadamente e forçando assim a BBC a tocá-la na tradicional parada de sucessos de domingo da Rádio 1.

A música, tirada do Mágico de Oz, é “Ding Dong! The Witch is Dead”, e celebra a morte da bruxa.

Eu, lá

O tom da mídia, no começo, era de reprovação ao que o premiê David Cameron, conservador como Maggie, chamou de “mau gosto” – festejar a morte de alguém que nem foi enterrado.

Mas depois o contraponto foi aparecendo. Articulistas lembraram o quanto Thatcher dividiu os ingleses, ela que assumiu o cargo, em 1979, citando São Francisco de Assis: “Onde há discórdia, que eu traga concórdia”.

Foram lembradas passagens de seus onze anos de poder. Thatcher foi amiga e admiradora de Pinochet. Chamou Mandela de terrorista. Afundou um navio argentino na Guerra das Malvinas sem necessidade. Permitiu que seu filho Mark, um imprestável que levou consecutivas bombas na escola até desistir de estudar, ficasse multimilionário com comissões de grandes negócios feitos pelo governo inglês em seus dias.

Criou as sementes do que seria a causa maior da calamidade financeira que tomou o mundo a partir de 2007: sob Thatcher, os bancos deixaram de ser bancos, como eram, para se transformar em máquinas selvagens de produzir bônus de dezenas de milhões para seus executivos.

O risco que tomavam era absurdo – como se viu na quebra de tantos bancos que acabaram socorridos pelo dinheiro do contribuinte.

Um caso notável na Inglaterra foi o do RSB, para o qual o governo destinou 20 bilhões de libras para evitar que ele simplesmente parasse de funcionar por falta de dinheiro.

O executivo que levou o banco à miséria, Fred Goodman, que tinha recebido a comenda de “Sir”, acumulou dezenas de milhões em bônus enquanto o negócio marchava para o abirmo. Ao sair, sob os vergonhosos números de sua gestão, os britânicos souberam que ele levava uma aposentadoria vitalícia de 700 mil libras anuais.

Este foi o mundo gerado por Thatcher. O foco nas finanças acabou conduzindo o Reino Unido a um severo processo de desindustrialização.

O país que fez a Revolução Industrial virou uma ciranda financeira, e deixou de ter produtos para vender ao exterior. Disso se aproveitaram primeiro a Alemanha e, depois, a China, os dois maiores exportadores do mundo.

O que Thatcher fez foi uma bomba relógio, parecida com a que muitos executivos fazem em alguns negócios. Geram um tipo de resultado a curto prazo mas, logo depois, a realidade se impõe na forma de uma explosão.

A lógica das festas é perfeita: não se trata de demonizar uma senhora que morreu aos 87 anos depois de perder inteiramente o juízo por conta de uma demência que começou a se manifestar em 1993, três anos depois de ela ser obrigada a renunciar.

Trata-se, isto sim, de dizer não ao conjunto de ideias que ela representa – um modelo que levou a Inglaterra a um nível de desigualdade só conhecido na Era Vitoriana.

 

Paulo Nogueira

O jornalista Paulo Nogueira é fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo.

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