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A Globo estimula o racismo do BBB 19 enquanto der audiência. Por Nathalí Macedo

Paula mostra preconceito contra Rodrigo no BBB19 (Foto: Montagem)

Parece que o brasileiro progressista precisa de um reality show pra enxergar o óbvio: nossa cultura é escravocrata, nosso ranço colonial jamais foi vencido e, fora do nosso círculo, o racismo é muito mais escancarado do que conseguimos lidar.

O BBB acertou em cheio: tensionar questões de raça parece ser o foco dessa edição, porque a casa está propositalmente dividida entre pessoas negras e pessoas absurdamente racistas.

As pérolas vão de “cabelo ruim” a “tenho medo dele porque ele acredita nessas coisas de oxum” (?)

Além do racismo, vem também de bônus a intolerância religiosa, o que quase chega a ser uma redundância, porque uma coisa está contida na outra.

Nessa semana, a indignação na internet foi mais uma vez geral por conta de mais um episódio de racismo no reality: enquanto os dois únicos participantes negros da edição, Gabi e Rodrigo, cantavam juntos um samba de Jorge Aragão, outro participante, Maycon – ao que parece, um espécime comum de católico não-praticante – disse ter sentido um arrepio com aquelas “músicas esquisitas”, e que chegou a ouvir a voz de Jesus dizendo “Não faça igual a eles.”

(Há muitas pessoas ouvindo a voz de Jesus ultimamente, Damares que o diga. Talvez seja na verdade a voz de seus demônios interiores, uma espécie de alter ego preconceituoso e letal)

Ele contou a história em tom profético a outro participante, não por acaso um branco que também pega o bonde dos racistas.

“Cumprimentei (Gabi e Rodrigo), conversei, de repente eu senti um arrepio. Começou a tocar umas músicas esquisitas. Olhei para os dois, num sincronismo legal. Achei legal, juro por Deus. De repente, comecei a olhar e escutar uns negócios. ‘Não faça igual a eles’. Aí veio Jesus Cristo em minha mente. ‘Não para aqui. Para a vida inteira. Se fizer igual a eles, eles ganharão mais força’. Eu não sou doido”

Verdade, doido ele não é.

É apenas um exemplar típico da classe média cristã, que acredita que Orixás são demônios, que Candomblé consiste em sacrificar animais para fazer mal aos outros (quem faz isso é o capitalismo mesmo), e que qualquer pessoa que se aproxime de religiões de matriz africana – mesmo que minimamente, se expressando através de uma música – deve ser tratada com cautela.

Na internet, as pessoas surtam a cada episódio de racismo no programa – episódios aliás cada vez mais comuns. É difícil entender por quê estão surpresos com o que sempre foi uma realidade aqui fora: talvez porque, no nosso mitiê progressista, especialmente na internet, o racismo seja muito mais velado.

As pessoas se podam, ponderam, algumas de fato até tentam contribuir com a luta antirracista, e criamos a ilusão de que a luta antirracista é tão universal quanto o próprio racismo, o que é de uma ingenuidade infantil.  Nosso espanto, na verdade, é o espanto de olhar para o mundo real, fora da internet e fora da lacrolândia, e esse é um espanto positivo e necessário nos nossos dias: nossa sociedade é racista, o mitiê progressista é igualmente racista – porque nosso passado colonial é racista e nós ainda não fomos capazes de superá-lo – e nós mesmos somos racistas, embora sejamos racistas dispostos a se descolonizarem (enquanto Maycon, por exemplo, é um racista que ainda não entendeu nada).

Se um reality show como o BBB não servir pra mais nada, ele serve ao menos pra a gente olhar pra fora da nossa bolha e enxergar que ainda há pessoas estacionadas no século passado, e que essas pessoas não são loucas e não são aberrações, são fruto de uma moral e de uma cultura que estão em nós, e que ainda precisaremos combater por muitas décadas, talvez séculos.

Na tela da TV, somos confrontados conosco.

Nathalí Macedo

Escritora, roteirista, militante feminista, mestranda em Cultura e Arte. Canta blues nas horas vagas.

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Nathalí Macedo

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