A Grécia pode levar os “ventos da mudança” à Europa?

Atualizado em 1 de fevereiro de 2015 às 8:09

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Publicado na BBC.

 

Muitos disseram que a eleição do partido de esquerda Syriza espalhará ondas de choque por toda a Europa.

É verdade, mas ela também provocará harmonias esquisitas, respostas locais e ecos imprevisíveis. Também dará, é claro, esperanças a outros partidos de extrema esquerda europeus.

A crise econômica provocou o crescimento da extrema direita, mas até agora os herdeiros de Marx ainda não tinham dado as caras. Isso acaba de mudar.

O líder do partido espanhol Podemos, Pablo Iglesias, estava no palanque em Atenas pouco antes das eleições.

“Primeiro tomamos Manhattan, depois tomamos Berlim”, disse. Ele estava citando o músico e poeta Leonard Cohen e, ao mesmo tempo, declarando guerra aos neoliberais.

Mas ele teria sido mais profético se tivesse mencionado Madri – o partido tem chances reais de vencer as eleições gerais espanholas antes do fim do ano.

O Podemos já é o maior partido da Espanha em úmero de afiliados e aparece em primeiro lugar nas pesquisas de opinião – na mais recente, o partido aparecia com 28% das intenções de voto, comparado com apenas 19% do partido governista, o conservador PP, do primeiro-ministro Mariano Rajoy.

Neste sábado, milhares de pessoas foram às ruas na capital espanhola em apoio ao partido, em um de seus primeiros atos públicos após a vitória do aliado Syriza na Grécia.

“Os ventos da mudança começam a soprar na Europa”, disse Iglesias à multidão animada, que veio de diversas partes da Espanha, segundo o correspondente da BBC Tom Burridge.

“Sonhamos, mas levamos nossos sonhos a sério. Mais foi feito na Grécia em seis dias do que muitos governos fizeram em anos.”

 

Oportunidade social-democrata

Em um comício logo após a vitória, o novo primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras, disse acreditar que o partido de esquerda Sinn Fein venceria as eleições irlandesas no ano que vem.

Isso também não é impossível. E um eixo de extrema esquerda com Grécia, Espanha e Irlanda pode ser um desafio poderoso para os governos europeus.

A música “First we take Manhattan”, de Leonard Cohen, também diz: “Você me amava quando eu era um perdedor, mas agora está preocupado que eu possa vencer”.

Mas isso não se trata apenas da possível vitória de insurgentes radicais que estão fartos das doutrinas ortodoxas de Berlim e de Bruxelas.

É também uma oportunidade para os atuais partidos social-democratas.

Um dos poucos líderes europeus que cumprimentou o Syriza com entusiasmo verdadeiro foi o francês François Hollande.

Ele está preso em sua própria batalha com a Comissão Europeia pelo tamanho do orçamento francês e deve ver o novo governo grego como um aliado em uma luta por uma Europa mais Keynesiana (que acredita no Estado como agente indispensável para o controle da economia e rejeita algumas ideias liberais).

Já a posição do primeiro-ministro italiano Matteo Renzi é um pouco mais complicada, mas a vitória do Syriza virá a calhar para o “cabo de guerra entre flexibilidade e austeridade” do seu partido, nas palavras no ministro das Relações Exteriores italiano.

O resultado das eleições gregas provavelmente vai empurrar o governo italiano de cima do muro, para um lado ou para o outro.

Já Ed Miliband, líder do Partido Trabalhista britânico, não quer ser associado ao Syriza – seus assessores querem evitar o apelido “Red Ed” (“Ed Vermelho” ou “Ed Comunista”, em tradução livre).

Mas já há comentaristas de esquerda pedindo que Miliband siga os passos de Alexis Tsipras. Caso ele se torne o próximo primeiro-ministro britânico, os pedidos irão aumentar.

Tensões na UE

Em certo sentido, a batalha política que se desenha no continente, mesmo que entre as tradicionais esquerda e direita, pode trazer uma dose de debate democrático necessária ao processo de tomada de decisões geralmente tecnocrático da União Europeia.

Mas se a divisão entre esquerda e direita se transformar em um conflito entre vencedores e perdedores econômicos, ela irá enfatizar a tensão básica dentro do bloco.

Esta eleição chega justamente ao coração do problema – a crise grega desnudou os principais paradoxos e enigmas do projeto europeu.

A crise expôs o abismo entre a aspiração romântica original de uma unidade supranacional e as diferentes necessidades e pontos de vista econômicos dos estados.

Para os europeus do norte, a Grécia é um destino de romance, de admiração pelo lugar onde nasceu a civilização ocidental.

Com o passar dos anos, os bárbaros loiros demonstraram uma certa sentimentalidade em relação ao “berço da democracia” e seu lugar em uma nova Europa.

A Grécia moderna mal tinha saído de uma ditadura militar em 1974 quando se atirou de cabeça na União Europeia em 1981.

Para muitos é impensável que o país não seja uma parte integral do sonho europeu. O mesmo se aplica à participação grega no euro.

Uma moeda única que pode ter parecido uma solução óbvia para a Alemanha e a França não parecia tão lógica para a Grécia, mas o euro também era uma expressão de ambição política.

Alguns esperavam que, quando a Europa tivesse sua própria moeda, uma entidade supranacional emergisse completamente formada, como a Vênus do mar. Como excluir a Grécia desse otimismo?

 

Teste de solidariedade

A Grécia se tornou a lesma da Europa, muitas vezes nem sequer tentando chegar aos padrões de outros países europeus – um país onde só os ingênuos pagavam impostos, onde muitos viam o esbanjamento do estado como um direito, onde uma burocracia kafkiana só conseguia ser vencida pela propina, onde o sistema sufocava as esperanças e os partidos políticos recompensavam seus fieis seguidores com empregos confortáveis nos empreendimentos estatais.

Quando tudo deu errado, os pagadores europeus – liderados pela Alemanha – intervieram para resgatá-los, mas o remédio pareceu uma punição, com Angela Merkel no papel de babá durona administrando uma dose de óleo de fígado de bacalhau.

Memórias de invasões e guerras foram revividas no país – imagens de Merkel eram mostradas ao lado de suásticas nas ruas de Atenas.

Agora, esses estereótipos ficarão ainda piores no momento em que a Grécia se recusa a tomar outra dose.

Para muitos gregos, as medidas de austeridade não são uma expressão do amor disciplinador dos pais, mas, sim, da arrogância colonial de chefes e banqueiros.

E agora, ouviremos mais ainda a ladainha dos “nortistas trabalhadores e pagadores de impostos sacrificando-se para manter os sulistas irresponsáveis em sua indolência banhada pelo sol”.

O que será testado agora são os limites da solidariedade e da empatia europeias. As tensões entre Norte e Sul, já aparentes, ficarão ainda maiores, aumentando a possibilidade de uma ruptura.

Neste sábado, Angela Merkel afirmou à revista alemã Die Welt que não considera cancelar a dívida grega, mas disse querer que o país permaneça na zona do euro.

Ignorar as demandas de um governo democraticamente eleito não será muito bom para a reputação da União Europeia, que já é amplamente acusada de ser elitista e desconectada da realidade.

 

Perigo da extrema direita

Além disso, François Hollande não foi o único líder francês a cumprimentar o Syriza. A líder do partido de extrema direita Frente Nacional, Marine Le Pen, também.

O governo grego votou em um grupo de ex-marxistas, comunistas e socialistas linha dura, é verdade. Mas é preciso lembrar que o partido que ficou em terceiro lugar – o Aurora Dourada – é o mais perto que se pode chegar hoje na Europa de um partido nazista tradicional.

O partido poderiam inclusive, ter se saído melhor nas eleições se seus líderes não estivessem presos, acusados de formar uma organização criminosa após o assassinato de um opositor.

Portanto, a ascensão da extrema esquerda não impediu a ascensão da extrema direita. O mais provável é que as pessoas estejam buscando novas respostas para as velhas perguntas.

O povo grego não votou por uma política econômica específica – eles investiram suas esperanças em algo que seja diferente da velha ordem.

Se seu investimento não for recompensador, isso não significa que vai querer voltar a sua antiga rotina.