A história das crianças arrancadas das famílias num experimento social na Dinamarca

Atualizado em 14 de junho de 2015 às 12:20
Helene, vítima do experimento, no segundo lar que teve na Dinamarca
Helene, vítima do experimento, no segundo lar que teve na Dinamarca

Publicado na BBC Brasil.

 

Em 1950, um grupo de crianças da etnia inuit (anteriormente chamadas de esquimós) foi retirado de suas famílias na Groenlândia e levado à Dinamarca para que fossem educados como “cidadãos dinamarqueses”.

O programa “Witness”, da BBC, conversou com uma das vítimas deste polêmico experimento social.

“Era um dia lindo de verão quando dois distintos senhores dinamarqueses apareceram na nossa casa”, lembra Helene Thiesen. Era 1951, ela vivia com sua família em Nuuk, a capital da Groenlândia.

“Estavam com um intérprete e com a minha irmã mais velha. ‘O que eles estão fazendo aqui?’, pensei. Estávamos bastante curiosos. Pediram que a gente saísse de casa enquanto minha mãe conversava com eles”.

“Perguntaram à minha mãe se ela estava disposta a me mandar para a Dinamarca. Aprenderia a falar dinamarquês e teria uma boa educação. Disseram que seria uma grande oportunidade para mim”, prosseguiu.

Helene conta que a mãe negou o ‘convite’ duas vezes. Mas os dinamarqueses seguiram pressionando. “Diziam que era só por seis meses e que eu teria a oportunidade de um futuro promissor.”

‘Novo groenlandês’

A Dinamarca estava decidida a melhorar as condições de vida da sua colônia ártica. Muitos deles, porém, viviam da caça às focas, poucos falavam dinamarquês e a tuberculose estava disseminada pela região.

As autoridades dinamarquesas decidiram que a melhor maneira de modernizar a ilha era criar um novo tipo de groenlandês.

Elas enviaram telegramas a diretores de escolas e padres pedindo que identificassem as crianças mais inteligentes entre 6 e 10 anos. O plano, idealizado em conjunto com a fundação “Save the Children” da Dinamarca, era enviá-los a famílias dinamarquesas para que fossem reeducados como “crianças dinamarquesas”.

Muitos se mostravam receosos a mandar seus filhos, mas finalmente 21 famílias cederam. O pai de Helene Thiesen havia morrido de tuberculose três meses antes e sua mãe ficou sozinha com três filhos pequenos.

“Minha mãe me explicou: ‘Você vai para a Dinamarca’. ‘O que é a Dinamarca?’, perguntei a ela”.

“‘É um país muito longe, mas bonito, é como o paraíso. Você não tem que ficar triste’, disse a minha mãe.”

Em maio de 1951, o barco MS Disko saiu de Nuuk com 22 crianças a bordo.

“No barco, olhei para a minha mãe e não consegui nem dizer ‘tchau’ com a mão. Estava enjoada: ‘Por que você está me deixando ir?’, pensei. Não entendíamos por que estavam nos mandando para um lugar tão distante. O que encontraríamos lá? Era tudo muito incerto.”

“Eu me lembro quando chegamos a Copenhagen. Estava anoitecendo e havia um porto muito grande”, contou Helene.

Após chegarem, as crianças foram enviadas às suas famílias adotivas. Mas, primeiro, passaram o verão em um “acampamento”, conhecido como Fedgaarden. “Depois, soubemos que, na realidade, eles estavam nos mantendo isolados, em quarentena”, disse.

“Nos colocaram em quarentena porque éramos o primeiro grupo de crianças que chegava da Groenlândia à Dinamarca. Eles temiam que tivéssemos algo contagioso.”

“Continuei me perguntando o que faria quando voltasse para casa. Tinha saudades de minha mãe e ainda sentia muito a morte de meu pai.”

A visita da rainha

A chegada das crianças inuítes era um projeto de tanto prestígio que até a rainha quis visitar o acampamento.

Mas, na foto que tiraram das crianças com a rainha, nenhuma delas sorri.

“Claro que houve momentos mais alegres, como quando íamos à praia. Mas quando nos mandavam dormir, chorávamos em silêncio. Eu me sentia muito triste e insegura”.

Em dezembro de 1951, uma revista dinamarquesa publicou uma reportagem descrevendo a experiência como um “sucesso”.

“O modo de vida aqui na Dinamarca é muito diferente do que esses meninos estavam acostumados, mas a habilidade que eles tiveram para se adaptar é impressiomante. Não é comum ver nenhum problema provocado por sua reação à civilização”, dizia a publicação.

“As crianças da Groenlândia já falam dinamarquês muito bem, mas quando a alegria ou a raiva os agitam, uma chuva de palavras groenlandesas aparece de repente, e sons sem sentido podem ser ouvidos.”

“Helene nunca disse uma palavra a seus pais adotivos, mas conversa com sua irmã adotiva, Marianne, que está lhe ensinando a costurar.”

Helene Thiesen desenvolveu um eczema em Fedgaarden e decidiram que ela deveria morar com um médico. Para tratar sua inflamação, cobriram seus cotovelos e calcanhares com uma pomada preta e proibiram-na de entrar na sala de estar para não danificar os móveis.

“Nunca me senti bem-vinda nessa família. Era uma estranha. A mãe tinha problemas mentais e ficava deitada o tempo todo.”

Helene conta que não confiava nos adultos na Dinamarca e, quando alguém lhe dirigia a palavra, apenas “assentia ou negava com a cabeça” porque não queria responder. Alguns meses depois, quando seu problema de pele melhorou, a garota foi transferida para uma família diferente.

“A segunda família me acolheu de maneira totalmente diferente. Era como um conto de fadas em comparação com a primeira. Eram pessoas muito calorosas”, disse.

De volta à Groenlândia

No ano seguinte, 16 dos 22 inuítes, incluindo Thiesen, foram enviados de volta à Groenlândia. A organização “Save the Children” deixou os seis restantes na Dinamarca – eles foram adotados por suas famílias de origem dinamarquesa.

“Quando o barco atracou em Nuuk, segurei minha mala e corri pela ponte para os braços da minha mãe”, disse Helene.

“E contei tudo o que havia visto. Mas ela não respondeu. Eu olhei para ela confusa. Depois de um tempo, ela me disse algo, mas não entendi. Nem uma palavra. Aí pensei: ‘Que coisa horrível! Não consiguirei falar com a minha mãe nunca mais!’. Falávamos idiomas diferentes.”

Teve, então, outra surpresa. Enquanto Thiesen estava ausente, outra fundação, a Cruz Vermelha Dinamarquesa, havia construído um lar para crianças em Nuuk.

Segundo a instituição, as crianças que haviam se hospedado em casas dinamarquesas não deveriam viver com suas próprias famílias “em condições piores”.

“Nossa nova ‘mãe’ – a diretora do lar – me tocou o ombro e disse: ‘Vamos, suba no ônibus, você vai para o orfanato’. Por que eu estava sendo enviada a um lar para crianças? Ninguém me respondeu. Observei a cidade por entre minhas lágrimas.”

No lar de crianças, os garotos e garotas queriam reaprender o groenlandês para se comunicar com seus pais de novo. Muitos dos empregados, que falavam o idioma local, começaram a ajudá-los.

“Mas então o diretor dinamarquês apareceu. ‘O que estão fazendo? Não podem ensinar groenlandês. Essas crianças precisam ser educadas para chegarem ao topo da sociedade. Portanto elas só falarão dinamarquês’.”

A relação de Helene com sua mãe nunca voltou a ser a mesma. “Me sentia muito triste pela decisão de me mandar para longe. Eu ficava realmente irritada porque ela não só me deixou ir, como também permitiu que eu voltasse a viver em um orfanato, apesar de morarmos na mesma cidade”.

“Eram tempos em que os dinamarqueses eram os senhores coloniais da Groenlândia. Eram ‘mestres’ no pior sentido da palavra. Eles controlavam tudo e ninguém poderia contradizer um dinamarquês.”

Somente em 1996, quando tinha 52 anos, Helene descobriu por que havia sido afastada de sua mãe.

E a notícia não veio do governo dinamarquês e sim de uma escritora que encontrou uma coleção de documentos no Arquivo Nacional da Dinamarca.

“Ela me ligou e disse: ‘Você está sentada? Você foi parte de um experimento.’ Me sentei no chão e a única coisa que fiz foi chorar.”

Experimento falido

Longe de servir como modelo para o intercâmbio cultural na Groenlândia, as crianças terminaram como um pequeno grupo sem raízes e marginalizados na periferia de sua própria sociedade. Vários deles se tornaram alcoólatras e morreram jovens.

“Alguns deles se tornaram mendigos, outros simplesmente ficaram marcados para sempre. Perderam sua identidade e a capacidade de falar sua língua materna e, com isso, perderam seu propósito de vida”, disse Helene.

Ela recebeu uma carta da Cruz Vermelha Dinamarquesa em 1998 “lamentando” o episódio. Finalmente, em 2009, a Save the Children da Dinamarca também se desculpou. Mas uma investigação interna descobriu que alguns dos documentos que detalham a participação da Save the Children podem ter sido destruídos propositalmente.

“O que aconteceu foi uma clara violação dos direitos fundamentais das crianças”, disse Mimi Jacobsen, secretária geral da Save the Children Dinamarca.

“Tinham boas intenções, mas tudo foi feito de uma forma terrível supondo que o pensamento nesse momento era que queriam educar e melhorar os groenlandeses para dar a eles um futuro melhor.” Em 2010, as autoridades da Groenlândia reivindicaram uma desculpa ao governo dinamarquês.

O Partido Democrata Social dinamarquês, então oposição, pediu uma investigação independente. Mas logo que eles assumiram o governo em 2011, reinou o silêncio sobre o tema. Helene disse que a experiência teve alguns resultados positivos.

“Apesar de ter jurado que nunca me casaria com um dinamarquês, porque estava revoltada com o poder colonial, acabei com um marido de lá. Junto com ele e meus filhos, temos uma vida feliz na Dinamarca.”

Helene Thiesen dedicou sua vida a cuidar dos filhos. Hoje tem 71 anos e está aposentada. Vive no sul da Dinamarca. “Em relação às autoridades dinamarquesas, minha mágoa é grande. É simplesmente incompreensível. O que vivi me magoará para sempre até o dia da minha morte.”