Publicado na BBC Brasil.
O atentado desta quarta-feira foi o mais violento, mas não é o primeiro ataque contra a sede da revista satírica francesa Charlie Hebdo, em Paris.
Com cerca de três décadas de história, a Charlie Hebdo sempre incomodou alguns grupos ao desafiar tabus e usar o escárnio e a sátira escrachada para expressar seu ponto de vista.
Em 2011, a sede da revista foi atacada com uma bomba incendiária depois de ter publicado na capa uma charge de Maomé com a manchete “Charia Hebdo” – em referência à lei islâmica.
Em 2006, muitos muçulmanos se irritaram com o fato de a publicação ter reimpresso as charges do profeta originalmente publicadas no jornal dinamarquês Jyllands-Posten. Na época, a polícia teve de ser mobilizada para proteger a redação.
O editor-chefe da publicação, Stephane Charbonnier, morto no ataque, já havia recebido ameaças de morte e andava com guarda-costas há três anos.
Revolução Francesa
Segundo o correspondente da BBC em Paris, Hugh Schofield, a Charlie Hebdo é parte de uma longa tradição do jornalismo francês que remonta às publicações que satirizavam Maria Antonieta no período que precedeu a Revolução Francesa.
Essa tradição combinaria um radicalismo de esquerda com um tom provocativo, com sátiras que muitas vezes beiram o obsceno.
No século 18, essas sátiras tinham com alvo a família real.
Algumas publicações da época traziam relatos – muitas vezes ilustrados – de supostas extravagâncias sexuais e atos de corrupção dos integrantes da corte de Versalhes.
Hoje, os alvos são muitos: políticos, a polícia, os banqueiros e a religião.
Mas a imprensa satírica francesa ainda é marcada pelo mesmo espírito de insolência que no passado foi usado para colocar em xeque as estruturas do antigo regime.
Para Schofield, a decisão da Charlie Hebdo de zombar do profeta Maomé é coerente com a sua história e razão de ser.
Criada em 1969 com o nome Hara-Kiri Hebdo, a revista provocou a fúria do governo um ano depois ao ironizar a morte do ex-presidente e herói de guerra francês Charles de Gaulle, na cidade de Colombey, fazendo menção a um trágico incêndio em uma discoteca, que havia matado mais de 100 pessoas dias antes.
“Balada trágica em Colombey – um morto”, anunciou.
Depois disso, a Hara-Kiri foi banida pelas autoridades francesas. Mas seus integrantes a relançaram com o novo nome.
Em 1981, a publicação da revista foi suspensa por falta de recursos e só seria retomada em 1992.
Visibilidade
A Charlie Hebdo nunca teve uma grande tiragem.
O que faz com que seja tão incômoda é a visibilidade: com grandes charges coloridas e manchetes incendiárias, a revista chama a atenção em bancas de jornal e livrarias.
As charges provocativas são a marca registrada.
Entre as publicadas pela revista nos últimos anos há desde policiais segurando cabeças decepadas de imigrantes até freiras se masturbando e papas usando preservativos.
A Charlie Hebdo é constantemente comparada com sua rival, mais popular, a Le Canard Enchaine.
As duas publicações procuram desafiar o status quo.
Mas enquanto a Le Canard Enchaine aposta nos furos de reportagem e na revelação de segredos guardados a sete chaves, a Charlie Hebdo lança mão do escárnio e de um humor muitas vezes polêmico.
Em algumas ocasiões as polêmicas também dividiram a equipe de jornalistas da revista.
Em um caso que teve alguma repercussão, um editor de longa data chegou a se demitir depois de uma divergência com outros editores sobre anti-semitismo.