A história absurda que Eduardo Coutinho, o maior cineasta do Brasil há alguns anos, nunca poderá filmar

Atualizado em 27 de outubro de 2014 às 13:23

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“Quando você está vendo um filme de Pasolini, é como se ele estivesse conversando diretamente com você”. A frase que descrevia o gênio italiano se encaixa perfeitamente na obra de Eduardo Coutinho.

Coutinho foi assassinado de maneira brutal por seu filho, Daniel, num surto psicótico. Não resistiu a uma série de facadas. Sua mulher, também atacada, estava internada em estado grave. Daniel, esquizofrênico, morava com os pais. Tentou se matar, sem sucesso.

Coutinho era, há pelo menos 20 anos, o maior cineasta do Brasil. Não que a competição fosse muito dura, já que o que produzimos nessa área são comédias absolutamente idiotas ou sociologia de segunda, com uma ou outra exceção. Coutinho era um documentarista original, inteligente, relevante, apaixonado.

Começou em 1954, mas teve de esperar por “Cabra Marcado Para Morrer”, de 1985, para se tornar conhecido. “Cabra” é sobre a trajetória do líder camponês João Pedro Teixeira. Coutinho teve de interromper as filmagens em 1964, por causa do golpe. Retomou 17 anos mais tarde, com a mesma equipe, em busca dos mesmos personagens, num exemplo de perseverança e apego a um bom enredo. É tanto a história de Teixeira quanto a de um filme inacabado.

Renegaria a arte engajada mais tarde. “O filme militante é uma tragédia porque já está escrito antes”, disse, acertadamente. Em “Edifício Master”, teve a ideia simples de entrevistar os moradores de um prédio decadente do bairro mais decadente do Rio, Copacabana. O retrato terno de um universo de famílias de classe média, média baixa.

Ele consegue dar uma transcendência à vida patética daquelas pessoas. A cena em que um senhor solitário, chamado Henrique, fã de Frank Sinatra, coloca “My Way” para tocar, é antológica. Enquanto Henrique canta junto com Sinatra na sala de seu pequeno apartamento, por um momento ele se torna dono de um passado triste, grandioso e misterioso.

“Jogo de Cena” parte de um anúncio no jornal em que ele convida mulheres a contarem sua história. Oitenta e três delas respondem e 23 são selecionadas. O diretor as leva a um teatro e as entrevista. Convoca também profissionais como Marília Pêra, Andréa Beltrão e Fernanda Torres para interpretar os relatos, além de atrizes anônimas. A certa altura, o espectador não sabe mais quem está fingindo, quem está realmente chorando e quais daquelas moças são ‘reais’.

“Jogo de Cena” é sobre cinema, sobre o limite entre a arte e a falsificação, sobre mentira e verdade. Num artigo do início dos anos 90, ele explicou seu modus operandi: “Adotando a forma de um ‘cinema de conversação’, escolhi ser alimentado pela fala-olhar de acontecimentos e pessoas singulares, mergulhadas na contingência da vida”.

De acordo com o delegado Rivaldo Barbosa, o assassinato de Coutinho é “uma expressão genuína da palavra tragédia”. Depois de matar o pai e assaltar a mãe, que só escapou porque se trancou no banheiro e ligou para outro filho, Daniel teria gritado: “Eu tentei libertar meu pai, tentei libertar a minha mãe e tentei me libertar, mas não consegui.”

Eduardo Coutinho — um acidente feliz no cinema nacional — não poderá filmar a história mais absurda que viu.