Esta espécie de pacto de desonra entre o Governo e a Nação só não atingirá mais profundamente o destino da democracia e os interesses permanentes do Brasil se o sr. Getúlio Vargas tiver os dentes quebrados – no sentido figurado, é claro.
A frase é do jornalista e político fluminense Carlos Lacerda (1914-1977), proprietário do diário carioca Tribuna da Imprensa. Faz parte de um editorial contra o então presidente Getúlio Vargas (1882-1954), que enfrentaria nos dias seguintes a votação de um processo deimpeachment na Câmara dos Deputados. Nas palavras de Lacerda, o impedimento era a “penicilina constitucional para a infecção que é [esse] governo”.
Essa tensão política não era novidade. Ela vinha se avolumando desde o final da década anterior quando Vargas, que governara ditatorialmente o país durante o Estado Novo (1937-1945), anunciou sua participação na eleição presidencial de 1950. Muitos políticos e jornalistas, alguns presos e calados nos anos anteriores, se uniram ao coro contra sua presença no pleito. Algumas dessas vozes faziam parte da União Democrática Nacional (UDN), principal e recém-criado partido antigetulista.
Foi nesse contexto que os discursos violentos de Lacerda começaram a atrair público. Em 1950, ele escreveu: “O senhor Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”.
Nos anos seguintes, foram inúmeros editoriais como esse, marcados pela extrema violência discursiva e não raro recorrendo à calúnia pura e simples. Para ficar em apenas dois exemplos, o embaixador brasileiro em Buenos Aires, João Batista Lusardo, foi chamado certa vez de “centauro dos pampas, metade cavalo, a outra também”. Já Lutero Vargas seria o “filho rico e degenerado do Pai dos Pobres”.
Lacerda estava longe do estereótipo do líder radical com influência restrita a pequenos grupos. Era amigo de famílias poderosas, como os Mesquitas (proprietários do jornal O Estado de S. Paulo), e com frequência usava os microfones da rádio Globo, no Rio de Janeiro, para proferir seus ataques. Rapidamente tornou-se um político conhecido em todo país.
Dono de retórica exuberante e ferina, ele colocava-se como puritano defensor do povo. Sua autoimagem de salvador da nação associava-se à insistente denúncia maniqueísta de que a população estava sendo continuamente explorada por corruptos vilões. Cotidianamente, Lacerda descarregava sua metralhadora de denúncias contra autoridades, especialmente dos partidos ideologicamente inimigos.
Se por vezes ajudou a elucidar abusos e contravenções, não raro ficava evidente que muitos de seus argumentos se baseavam em suspeitas com indícios frágeis. Sua retórica assemelhava-se, em linhas gerais, ao discurso da própria UDN, que se torno mais moralista depois que seu candidato, o brigadeiro Eduardo Gomes, perdeu duas eleições presidenciais consecutivas.
Maria Victoria de Mesquita Benevides, autora de uma obra-prima sobre o partido, afirma que a UDN possuía uma autoimagem de excelência de seus integrantes, o que a levou a se colocar com frequência como um “pedaço de chão limpo”, decente e digno em relação aos demais. Essa ideia de “partido incorruptível” era reforçada pela atuação parlamentar centrada nas constantes denúncias de desvios administrativos, de subversão da ordem provocada pelas políticas trabalhistas e da suposta infiltração comunista na sociedade.
Ao longo dos anos 1950, muitos udenistas passaram a defender a ideia de que era necessária uma “democracia tutelada”, pois “o povo não sabe votar”. Ou seja, não estaria preparado para usufruir a liberdade. Essa noção autoritária justificava os constantes apelos à intervenção militar contra um sistema político considerado “ilegítimo porque tolera (e até estimula) manifestações de grupos sociais incompatíveis com a ordem desejada”.
Em consequência desse raciocínio, defendia-se que “o golpe é legítimo porque quer destruir um sistema ilegítimo” ou, nas palavras de Carlos Lacerda, de que seria necessário “defender o golpe para evitar o golpe por via eleitoral”.
Mesmo com uma oposição ruidosa, Vargas demonstrou sua popularidade. Lançado pelo PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), ele foi eleito presidente com 48,7% dos votos em 3 de outubro de 1950. O que se viu nos anos seguintes já é bem conhecido dos livros de história. Vargas enfrentou uma ferrenha oposição no poder Legislativo e da maioria da imprensa. À exceção de Última Hora, todos os grandes diários lhe eram contrários. Nas palavras da cientista política Maria Celina Soares D’Araújo, o “desarmamento publicitário do governo” era evidente.
Para muitos desses opositores, o presidente não havia abandonado seu passado autoritário e estaria planejando uma nova ditadura controlada principalmente a partir dos sindicatos de trabalhadores. Nas palavras da época, preparava-se em silêncio uma “república sindicalista”.
Somaram-se ao quadro turbulento as constantes denúncias de corrupção envolvendo membros do governo, a vigilância quase macarthista em relação aos comunistas colocados na ilegalidade em 1948 e a atuação do ministro João Goulart em defesa dos trabalhadores. Embora o PIB tenha crescido 6,2% ao ano em média, a inflação em ascensão (média de 17,8% ao ano) corroía o poder de compra dos trabalhadores.
Em março de 1954, apenas duas semanas depois da controversa demissão de Goulart, fruto da pressão dos militares, Carlos Lacerda divulgou em seu jornal um discurso reservado do então presidente da Argentina, Juan Domingo Perón.
Nele, Perón afirmava que, antes da eleição, havia acertado secretamente com Vargas a criação de uma aliança econômica envolvendo Argentina, Brasil e Chile (Pacto ABC). Acrescentou que Vargas lhe dera direito de representar os interesses do Brasil junto ao Chile. Os três países eram então governados por líderes nacionalistas. As revelações caíram feito uma bomba no mundo político.
Diante da repercussão negativa, a embaixada argentina negou o discurso, que hoje se sabe autêntico. A situação piorou quando um magoado ex-chanceler de Vargas, João Neves da Fontoura, deu um depoimento a O Globo. Afirmou que Vargas tivera, no mínimo, uma “negligente cumplicidade” com os planos secretos de construir uma aliança com a Argentina. Não apresentou, porém, provas documentais de que Vargas e Perón tivessem feito um pacto à revelia dos outros poderes das duas nações.
Esses depoimentos fundamentaram o processo de impeachment. Na ocasião, Vargas foi denunciado com base em dois argumentos. O primeiro o acusava de participar de uma conspiração envolvendo o Pacto ABC. O segundo rel
acionava-se a uma série de acusações envolvendo improbidade administrativa e crimes de responsabilidade ligados à má execução orçamentária.
Embora o relator tenha recomendado seu arquivamento devido à falta de provas, o processo foi submetido à Câmara dos Deputados, que discutiu o assunto durante duas nervosas semanas. Em 16 de junho de 1954, 135 parlamentares votaram contra a proposta, 36 a favor e 40 se abstiveram.
Em suas memórias, o líder udenista Afonso Arinos recordou que um dos defensores mais intransigentes do pedido de impeachment foi o líder militar udenista Eduardo Gomes, derrotado por Getúlio na eleição anterior. Ao contestar que a batalha muito provavelmente seria perdida e que, dessa forma, Vargas poderia momentaneamente ganhar terreno, Arinos escutou deste que a vitória temporária do presidente pouco importava.
“Isso [a derrota do impedimento] é necessário para que se forme, no meio militar, a consciência de que não há solução legal”, assegurou Eduardo Gomes. Ou seja, o esgotamento das tentativas constitucionais de derrubar o governo seria uma forma de fortalecer entre os oficiais o projeto de intervenção armada. Lacerda, como se sabe, tinha livre trânsito entre os militares que conspiravam pelo abreviamento do governo através da força. Desde esse período, passou a ser chamado pejorativamente pelos inimigos de “o corvo”.
Salvo do impeachment, o governo ficou ainda mais desgastado. No início de agosto, Vargas ousou aparecer na tribuna do Hipódromo da Gávea, reduto tradicional da elite carioca. Recebeu uma sonora vaia, mostrando os efeitos da intensa campanha política e jornalística contra seu governo.
Três semanas depois, o presidente cometeu suicídio após uma das mais graves crises políticas da história do Brasil republicano. Os detalhes são conhecidos por todos. Em reação, populares furiosos atacaram sedes de jornais em várias capitais do Brasil, como O Globo, Tribuna da Imprensa e os jornais da rede Diários Associados.
Ferido em um atentado igualmente abominável planejado dentro do palácio do Catete, Carlos Lacerda teve que se esconder para não ser linchado. Os espontâneos ataques da população mostraram bem que, nesse momento, ela não reconhecia a grande imprensa como porta-voz da opinião pública. A estridente campanha dos jornais contra o governo estivera distante da opinião de muitos.
Obviamente, a imprensa não pode ser responsabilizada exclusivamente pelo trágico desfecho do governo Vargas e pela divisão social que culminou no golpe militar uma década depois. No entanto, o caso ilustra bem os perigos de uma imprensa excessivamente partidarizada e que, em nome de projetos políticos autoritários, abandona o objetivo (inalcançável, mas necessário) de informar com o máximo de isenção possível.
Os terríveis episódios dos anos 1950 mostram que, quando a imprensa se torna soldado fundamental das lutas por poder, ela inevitavelmente amplia a polarização, a intolerância e o acirramento das paixões políticas que colocam em risco um bem conquistado a duras penas: a democracia.
O texto acima é de Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos, doutor em História pela USP. Ele foi foi publicado originalmente no blog Viramundo, de Rodolpho.